Por Rev. Alexandre de Jesus
Em meio a este cenário produzido pela pandemia, tenho me deparado com tentativas diversas de interpretar os acontecimentos. Alguns apelam para o argumento da ira divina e para um horizonte apocalíptico como explicação para tudo isto que nos afeta como humanidade. Mas também tenho sido interpelado por alguns que, em nível individual, perguntam: “Por que Deus permitiu tudo isto? Sendo Ele poderoso, pode pôr um fim a estas coisas, por qual razão não o faz?” Ou seja, honestamente reavivam a clássica questão acerca do mau no mundo.
A tradição protestante reformada busca o equilíbrio entre, por um lado, crer em Deus enquanto soberano e, por outro, não abolir deste horizonte de fé a responsabilidade humana sobre as coisas que resultam de suas ações neste mundo.
Entre os reformados, isto é compreendido como paradoxo. O Deus soberano governa sobre todos os acontecimentos, nada escapando á sua vontade, porém de uma forma que a responsabilidade dos seres humanos não seja abolida, tornando Deus culpado pelo mau neste mundo.
Em não raras ocasiões, ao lidar com este paradoxo, as pessoas enfatizam demais a soberania divina. Como, por exemplo, estes que buscam na ira divina a razão de ser dos acontecimentos desta pandemia. Estabelecem uma lógica meritocrática e constroem argumentos do tipo: pessoas se recusam fazer a vontade de Deus e por isto estão sendo punidas por ele. Mas como ficam aqueles que são julgados como cumpridores da vontade de Deus, uma vez que estes também estão morrendo? Já que o coronavirus não tem discriminado crentes seja de qual religião forem ou ateus, todos estão igualmente morrendo. Se encontramos algum desequilíbrio no tocante a quem está morrendo ou sofrendo devido a pandemia, podemos reconhecer que os mais afetados o são por razões sociológicas que evidenciam o desequilíbrio. Tais como pobres ficando mais pobres e morrendo em maior número como consequência das desigualdades sociais e econômicas, seja para se manterem em isolamento ou seja por, quando se vêem doentes, só lhes restar um precário sistema público de saúde como alternativa.
Este último dado evoca novamente o elemento da responsabilidade humana em contraposição á soberania divina. Condições sociais e econômicas tornam os pobres os mais vulneráveis nesta pandemia, e isto é consequência das ações humanas que historicamente submeteram estas populações a tais condições.
O vírus, outrora, oculto, em florestas e ambientes naturais, foi espalhado pelo planeta, quando humanos começaram a invadir estes ambientes florestais em suas atividades predatórias ou de exploração econômica em larga escala para atender a procura por bens de consumo cada vez mais crescente na humanidade.
E uma vez que o vírus se espalhou, também é de responsabilidade humana, as atitudes de descaso, de minimizações ou de omissões praticadas por governantes na gestão dos eventos desencadeados pela pandemia. Testemunhamos isto na Espanha, na Itália, e agora nos Estados Unidos de Trump e no Brasil com Bolsonaro. Neste último país, após mais de 90 mil mortes, o presidente Bolsonaro cinicamente aparece diante da imprensa com caixas de remédios sem eficácia comprovada para combater a Covid ou mostrando bananas para os repórteres. Por sinal, mantendo-se na mesma linha de ação que assumiu deste o início da crise. Desmantelou o ministério da Saúde, depois do pedido de demissão de dois ministros, deixando até o momento o ministério sob a condução de um ministro interino. Tentando ocultar da população dados sobre a quantidade de mortes e de contágio, agredindo a imprensa, demonstrando desdém pelas vítimas quando interrogado por repórteres acerca do crescente número de mortos. Incentivando aglomerações, sendo péssimo exemplo por não seguir recomendações dadas por epidemiologista para conter a disseminação do vírus.
O teólogo luterano, Paul Tillich, utilizando outros termos, de certo modo, também lida com este paradoxo da soberania de Deus/responsabilidade humana. Tillich propõe os pólos da liberdade/destino, não como se o destino fosse algo previamente determinado, mas como resultado do uso da liberdade.
Diante disto, pergunto: se ao invés de interpelarmos a realidade, seguindo uma lógica de castigo e recompensa oriundos da parte de Deus, identificarmos a nossa responsabilidade em tudo isto que está acontecendo? E também pensarmos a respeito de como escolheremos agir para resolver os problemas, ou seja, escolher o caminho de solidariedade e empatia ou de egoísmo. Ou ao invés de tentar perscrutar o que é misterioso e transcendente numa fulga ou alienação do que está bem evidente diante de nós, devamos responsabilizar a quem tem responsabilidade, exigir tomadas de atitudes diante da crise a quem for responsável por as tomar.
Reverendo da IPU em Aracaju-SE.
Artigo publicado no blog Teologando na Serra : http://teologandonaserra.blogspot.com/2020/08/soberania-divina-e-responsabilidade.html?m=1