Marcelo Barros*
Hoje pela manhã, abri o diretório litúrgico da Igreja Católica no Brasil e descobri que para a celebração deste dia 24 de março, não há a mínima alusão ao martírio de Oscar Romero. Nada. Como se não tivesse existido. Celebra-se a memória de santos filipinos, da Nova Guiné, do Vietnam e claro a maioria dos papas e bispos da Europa. Não deixa de ser estranho que o papa Francisco tenha canonizado Oscar Romero como santo oficial da Igreja, em cerimônia pública no Vaticano, em outubro de 2018 e até agora, o diretório litúrgico da Igreja Católica no Brasil não faça a mínima referência a isso. Provavelmente significa que até hoje este santo ainda não faz parte da devoção dos que elaboram esse diretório e dos responsáveis por sua publicação. Pode significar que até hoje o seu martírio não foi compreendido pelos mesmos que nunca aceitaram ou reconheceram o seu ministério pastoral. Até hoje não quiseram ouvir aquilo que Pedro Casaldáliga, com tanta propriedade chamava: a sua última homilia. Ela foi proclamada não com sua boca, mas com o seu sangue, misturado ao pão e vinho da eucaristia, que Romero celebrava quando recebeu o tiro fatal.
De fato, quarenta e um anos depois desse martírio, ele parece mais incômodo e mais perturbador para os funcionários de cúria, para os eclesiásticos e grupos do Catolicismo guerreiro dos cavaleiros de Colombo e todos os cruzados dos centros, confrarias e demais redutos do Catolicismo como religião civil, aliada aos impérios econômicos e políticos do mundo.
Até hoje, a profecia de Romero continua como é a palavra de Deus: “penetrante como espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4, 12).
Ela nos recorda a conversão quase nunca fácil de um bispo que ao se tornar arcebispo no lugar de “subir” e se tornar mais prudente em preservar a sua autoridade eclesiástica, aceita ser tão coerente com a sua fé e o que acreditava ser a sua missão que se indispõe com cúria romana, nunciatura em San Salvador e muitos dos seus irmãos, bispos salvadorenhos.
Como explicar que o arcebispo nomeado por Roma por ser conservador, em apenas um ano e meio tenha merecido três visitas “apostólicas” em nome de Roma para investigar o seu ministério? Como compreender que ele não tenha obedecido ao que em sua visita a Roma, o papa João Paulo II lhe tenha dito claramente: “Trate de entrar em acordo com o governo”. Pode fazer o bem aos seus pobres, pode pregar a justiça e a solidariedade, mas sempre em boa relação com o poder. Ao invés disso, no domingo, 23 de março, na homilia da missa transmitida pela rádio para todo o país, Romero prega a desobediência às autoridades. Diz claramente aos soldados: “Em nome de Deus, parem de matar”.
No dia seguinte, celebrou de véspera a festa da anunciação do Senhor e se tornou ele mesmo o anjo anunciador de que a encarnação de Jesus, hoje, na América Latina, toma o rosto da solidariedade à caminhada do povo organizado e a todo esforço de libertação do Capitalismo, do Patriarcalismo, do Colonialismo e também de uma religião legitimadora dos impérios econômicos e políticos de hoje.
Assim que a morte do arcebispo foi anunciada e se tornou conhecida, adolescentes e moças de um conceituado colégio religioso da capital foram descobertas fazendo uma festa para celebrar a alegria de que tinha sido assassinado o arcebispo comunista. A maioria dos bispos do país lamentou a morte, mas os comentários diziam: “Ele se expôs demais. Era um homem bom, mas ingênuo e se deixou usar pela esquerda”. Na véspera da canonização, na casa dos jesuítas em Milão o velho padre Bartolomeu Sorge, perto de seus 90 anos, afirmava: “Meu Deus, na época da 3ª conferência episcopal latino-americana, eu era diretor da revista Cività Cattolica e o Vaticano me mandou a Puebla para vigiar dois arcebispos suspeitos: Helder Camara e Oscar Romero. Fui. Ali me tornei amigo deles. Agora, descubro que me mandaram espionar e vigiar a dois santos”.
Em nossos dias, mais do que em 1980, há 40 anos, no Brasil e em muitos países, enfrentamos novas formas de necropolítica. Tal qual ocorreu com Oscar Romero, autoridades eclesiásticas e grupos católicos rejeitam a Campanha da Fraternidade Ecumênica, falam mal do papa Francisco, condenam o lockdown, pedem Igrejas abertas com cultos cheios de gente e se colocam como sendo discípulos do falso messias que nos governa.
Não calam nossas vozes, como não conseguiram calar a de Romero que continua gritando: Em nome de Deus, parem de matar. Há 29 anos, a cada 24 de março, memória do martírio de Romero, celebra-se o Dia dos missionários e missionárias mártires. E o costume é celebrar por um dia de oração e até de jejum em memória dos missionários e mártires do mundo inteiro. Neste ano, para este 29º dia de memória dos mártires, o tema escolhido foi “Vidas entrelaçadas”. Vai muito no sentido da palavra de Oscar Romero: “Se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho”.
Ao celebrar a memória do martírio de Romero e de todos os irmãos e irmãs mártires da missão, reavivemos a profecia em nossa forma de ser e de viver. Vivamos esta Páscoa como a festa da anunciação, realizada através do nosso testemunho profético da encarnação de Jesus em nosso povo mártir de tantas pandemias. São Romero das Américas, rogai por nós.
* Monge Beneditino, assessor de movimentos sociais e do CEBI.