Os cristãos não devem se furtar à política, mas abraça-la com coragem e ousadia
Por Gabriel Vilardi, SJ*
Vivemos em um mundo fragmentado. Sentimos diariamente o peso da polarização nos grupos, nas famílias, na sociedade. O desejo de dominação e poder não está restrito às relações pessoais, nem só entre as disputas geopolíticas internacionais, mas se espraia para a relação Estado-cidadão. Há uma ideologia perversa, muitas vezes apoiada na religião, que anseia pela eliminação dos ditos maus cidadãos pelos “cidadãos de bem”.
O centro parece prevalecer sobre as periferias. Conforme aponta o papa Francisco, a “globalização da indiferença” e a “cultura do descarte” impõem-se com crueldade. As vozes rebeldes que ousam questionar e desafiar o sistema socioeconômico estabelecido precisam ser silenciadas. Ressurge um clamor por governos fortes que flertam despudoradamente com o autoritarismo e com o enfraquecimento deliberado do Estado Democrático de Direito. Crise tornou-se uma palavra desconcertantemente atual.
Diante desse cenário desolador o sumo pontífice, na Fratelli tutti, nos alerta com firmeza que “a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efêmeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro” (n. 15). Trata-se da má política, sustentada pelas fake news e pelos extremismos que negam a pluralidade.
Mas frente a esses tempos incertos, qual o caminho a seguir? Certamente não o que opte, confortável e orgulhosamente, por uma alienação antipolítica! Aliás, desde o papado de Pio XI, passando por São Paulo VI e Bento XVI e novamente trazido à baila pelo atual pontífice, o ensino social da Igreja não deixa margem para dúvidas: “a política é a forma mais perfeita de caridade”. E os cristãos não devem se furtar àquela, mas abraça-la com coragem e ousadia.
Uma política que nasça do diálogo franco e de uma amizade social, para além de quaisquer interesses egoístas e mesquinhos. Este, por sua vez, só pode brotar a partir de uma proximidade própria da “cultura do encontro”. Cultura perpassada pela confiança mútua entre irmãos e irmãs de uma mesma família humana. Encontros que não temem a diferença, antes valorizam a riqueza da alteridade que é o outro.
Segundo o filósofo judeu Emmanuel Levinas, sobrevivente dos horrores do nazismo, o face a face com outrem me compromete enquanto subjetividade ética. A “epifania do rosto” revela uma relação assimétrica e impede que o sujeito se feche em si e seja reduzido a mesmidade. Ou seja, a homogeneização é rechaçada, porque desumaniza e empobrece. Esse terceiro suscita uma responsabilidade que é justiça social e antecede qualquer outro paradigma.
Pensar outramente é, pois, o desafio que se impõe! E, como nos ensina o papa Bergoglio, passa inevitavelmente pela política, “um apelo sempre novo”: “que a sociedade se oriente para a prossecução do bem comum e, a partir deste objetivo, reconstrua incessantemente a sua ordem política e social, o tecido das suas relações, o seu projeto humano” (Fratelli tutti, nº 66). Projeto que coloque no centro a vida na sua dimensão integral, inclusive o cuidado com a Casa Comum. Jamais, portanto, a avidez pelo lucro e outros interesses utilitários de uma pequena elite devem prevalecer sobre a coletividade.
Uma política que dialogue sem medo com todos os setores da sociedade e em que haja espaço para os descartados e marginalizados do sistema vigente: as mulheres, os povos indígenas, os afrodescendentes, a população LGBTQIA+, os migrantes e refugiados, a classe trabalhadora, os sem-terra e as pessoas em situação de rua, os encarcerados… Vítimas de uma lógica excludente, não precisam ser tuteladas paternalmente pelo Estado, mas ouvidas e consideradas na sua dignidade humana.
Ser um defensor dos Direitos Humanos no Brasil é arriscado e pode custar a própria vida. Segundo o relatório da ONG Global Witness, publicado recentemente, somos o quarto país no mundo que mais mata ambientalistas. Uma dessas vítimas foi irmã Dorothy Stang, assassinada, em 12 de fevereiro de 2005, no estado do Pará.
A missionária estadunidense estava comprometida com os pequenos agricultores da região, fortemente marcada por disputas agrárias com o grande latifúndio. Mesmo consciente das ameaças, a religiosa não se intimidou nem fugiu dos conflitos, mas manteve-se até o fim aberta ao diálogo. Mártir da terra, seu testemunho inundou aquele chão perpassado por injustiças e contribuiu para que uma vida mais digna fosse assegurada àqueles camponeses.
Não haverá uma sociedade justa enquanto não se preservar e valorizar a memória das lutas históricas pelos direitos assegurados no atual ordenamento jurídico. Eles nem sempre estiveram aí. E diante dos recorrentes ataques, encontram-se perigosamente ameaçados. A Constituição Cidadã de 1988, não foi dada pela benevolência das classes dirigentes. Ao contrário, trata-se de uma longa e dura conquista da sociedade civil organizada que participou ativamente nesta construção conjunta.
Neste ano em que se comemora o centenário de duas fundamentais figuras da história recente do país, seus testemunhos lúcidos nunca foram tão importantes! Esses dois Paulos têm muito a nos ensinar. Dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal da resistência, enfrentou com ousadia as violações dos anos de chumbo e sempre se colocou ao lado dos perseguidos políticos e do povo pobre da periferia. Seu lema “De esperança em esperança” traduz uma vida que foi sinal de coragem para muitos desamparados pelo arbítrio do poder.
Já o pensador Paulo Freire, patrono da educação brasileira, apostou no processo educativo como conscientização crítica contrária a qualquer educação bancária uniformizante. Acreditava que a libertação das relações de opressão acontece conjuntamente, nunca de modo externo e solitário. Defendeu sempre a primazia do diálogo, em que “dizer a palavra, com que, pronunciando o mundo, os homens o transformam”. Mesmo diante de todas as incompreensões e reações adversas que sofreu, o incansável pedagogo insistiu com teimosia e ensinou a conjugar o verbo “esperançar”.
Não há noite escura o suficiente em que não se possa esperar a aurora que vem e desponta no horizonte. Como proclamou com profecia o bispo-poeta Pedro Casaldáliga:
É tarde,
porém é nossa hora.
É tarde,
porém é todo o tempo
que temos nas mãos
para fazer o futuro.
É tarde,
porém somos nós
esta hora tardia.
É tarde,
porém é madrugada
se insistirmos um pouco.
Em que pese o caminho possa ser um pouco longo, ainda assim ele está aí, disponível para ser trilhado. Basta darmos os primeiros passos e as dúvidas vão se dissipando paulatinamente. E aos poucos tomamos consciência de que continuamos os passos dados por aqueles e aquelas que nos precederam nesse peregrinar: irmã Dorothy Stang, dom Paulo Evaristo Arns, Paulo Freire… Não tenhamos medo de sermos homens e mulheres que sonham e buscam o diálogo fecundo, construtor de pontes e demolidor dos muros da indiferença estéril!
*Gabriel Vilardi, é jesuíta; bacharel em Direito pela Pontifício Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduando em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). E-mail: [email protected]
Foto: legenda/crédito – Segundo Levinas, o face a face com outrem me compromete enquanto subjetividade ética (Unsplash/LinkedIn Sales Solutions)
Fonte: Portal Dom Total