Artigos e Reflexões

Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff – 50 anos da Teologia da Libertação

Por Emerson Sbardelotti *

 

Teologia da Libertação:

É Povo de Deus fazendo História,

Compromisso e Memória,

Fermento na massa e missão

(Emerson Sbardelotti)

Gustavo Gutiérrez[1] e Leonardo Boff[2] não precisam de apresentação, muito se escreveu sobre a obra destes autores em todo o mundo. São os iniciadores da Teologia da Libertação pelo viés católico; no mesmo período em El Salvador, o mártir Ignacio Ellacuría, escreve um artigo intitulado: Liberación: misión y carisma de la iglesia latino-americana; no Uruguai, Hugo Assman publica o livro coletivo: Opresión-liberación: desafio de los cristianos.

Neste artigo presto uma singela homenagem a estes dois profetas, que nos fazem sentir Deus e o seu amor perto e dentro de nós. A Teologia da Libertação é antes de tudo, uma libertação da Teologia. Ela quer ser uma Teologia para a nossa situação e não uma simples cópia da Teologia de outros países. Nossa atenção, nosso olhar, a partir da Teologia da Libertação, se volta para o diálogo, o respeito e o encontro com novas realidades e saberes.

Emerson Sbardelotti e Gustavo Gutiérrez

Teologia da Libertação[3] que completa em 2021, 50 anos de existência a partir do lançamento do livro Teologia de la Liberación – Perspectivas, em Lima, no Peru, no ano de 1971, do dominicano Gustavo Gutiérrez. Expressão que segundo Gutiérrez nasce com esse nome pouco antes de Medellín (Chimbote, Peru, julho de 1968). A consciência de estar em uma nova etapa na vida de nossos povos e a necessidade de tentar compreendê-la como um chamado do Senhor para anunciar devidamente seu Evangelho acompanham desde então o desenvolvimento da teologia da libertação na América Latina. Ambas estimulam esta reflexão, exigindo dupla fidelidade: ao Deus de nossa fé e ao povo latino-americano. Esta matriz faz que não possamos separar processo histórico libertador e discurso sobre Deus (GUTIÉRREZ, 2000, p. 12).

Segundo Leonardo Boff, num contexto de vigilância policial, de sequestros, torturas e assassinatos políticos foi escrito Jesus Cristo Libertador. Inicialmente apareceu em forma de dez artigos publicados na revista de espiritualidade Grande Sinal em 1971. Em 1972 foi lançado como livro enriquecido com alguns capítulos introdutórios. Em grande parte, a teologia da libertação se construiu ao redor do tema Jesus Cristo Libertador. Se não anunciarmos a Jesus como Libertador não anunciamos o Jesus que os Apóstolos conheceram e nos transmitiram. Sua prática, sua mensagem, sua morte como consequência de seu compromisso com o Pai e com os bens do Reino na história e, finalmente sua ressurreição, inauguração da libertação em plenitude, fundaram uma mística poderosa de solidariedade e até de identificação com os pobres contra a sua pobreza. O seguimento de Jesus firmava o comportamento cristão na sociedade a ser transformada (BOFF, 2009, p.13-14).

É ponto comum entre as duas obras que a pobreza significa morte! Libertar opõe-se a dominar. Libertar é sinônimo de viver. Dominar é sinônimo de morrer.

Seguir Jesus de Nazaré na opção pelos pobres, é saber que tal opção não acontece porque são os melhores, mas por que são as vítimas! Quem são os pobres de hoje? Todas as pessoas que sofrem qualquer tipo de violência! Toda e qualquer violência retira da pessoa sua dignidade enquanto ser humano.

Experimentar a fé em Jesus de Nazaré é se comprometer com a libertação histórica dos povos crucificados! O grande desafio é fazer descer da cruz os povos crucificados! E esse desafio começa a ser realizado quando lemos a nossa realidade, o chão em que pisamos, a partir da Palavra de Deus pelo viés libertador, jamais pelo viés fundamentalista e fanático.

Gutiérrez argumenta que o trabalho teológico propriamente dito começa quando tentamos ler essa realidade à luz da Palavra. Ele implica ir às fontes da revelação. Por isso o significado bíblico da pobreza constitui uma das pedras angulares – e primeiras – da teologia da libertação (GUTIÉRREZ, 2000, p. 22).

Para Leonardo Boff, o Reino de Deus não é só espiritual: de tudo isso um dado resulta claro: Reino de Deus, ao contrário do que muitos cristãos pensam, não significa algo de puramente espiritual ou fora deste mundo. É a totalidade desse mundo material, espiritual e humano agora introduzido na ordem de Deus. Cristo tem consciência de que com ele já se iniciou o fim deste velho mundo. Ele mesmo já pertence ao Reino. A participação na nova ordem está condicionada à adesão à pessoa e à mensagem de Jesus (BOFF, 2009, p. 43-44).

Portanto, as passagens do Deus Libertador no Primeiro Testamento: no Êxodo, nos Profetas, no Salmo 82,2-4[4], onde Deus se faz presente na luta do povo em defesa da vida, não deixam margem para dúvida por uma opção pelos pobres. No Segundo Testamento, encontram-se as Palavras e as Ações de Jesus de Nazaré nos Evangelhos, juntamente com o testemunho das Primeiras Comunidades Cristãs e as cartas de amor e compromisso redigidas por pessoas que viveram até as últimas consequências a alegria do Evangelho. A Palavra de Deus é a fonte original e primordial da Teologia da Libertação.

Carlos Mesters[5] afirma que o Vaticano II estimulou, e essa leitura da Palavra foi provocando o surgimento de comunidades em toda parte. O povo foi se agregando em grupos. A Palavra foi agrupando as pessoas. E, sobretudo, depois de Medellín (1968), houve aqui no Brasil o começo forte de formação das CEBs, em que o povo, lendo a Bíblia, começou a olhar também a realidade. Temos, então, três etapas: conhecer a Bíblia, viver em comunidade e essa comunidade existe a serviço da realidade. O primeiro desafio para o futuro é manter esses três pontos unidos: colocar em dia o conhecimento, manter a comunidade viva — porque lá existe a fé que nos faz enxergar o Espírito — e manter sempre essa atenção da comunidade para a realidade do povo. A Igreja não é uma realidade em si mesma. Ela existe a serviço da vida e da humanidade. O segundo desafio é que a Palavra de Deus tem duas dimensões básicas. É luz e força. Luz enquanto nos traz consciência, conhecimento crítico da realidade. Força enquanto nos ajuda a caminhar. Na realidade pastoral isso está um pouco separado. Os movimentos carismáticos insistem mais na força e os libertadores na luz, na consciência mais crítica. É um desafio tentar unir essas duas dimensões, para superar o perigo do fundamentalismo que nos ameaça de todos os lados. Outro desafio é colocar a exegese, o estudo da Bíblia, a serviço dos pobres — e não apenas buscar aí o aumento do conhecimento —, numa linha de libertação sobretudo ecumênica. O ecumenismo cresce na medida em que estudamos a Bíblia para servir à vida, como Jesus falou: “vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Um outro desafio é a leitura feminina ou feminista da Bíblia. Nas comunidades, a maior parte das pessoas que participam são mulheres e entre os exegetas a maior parte são homens. Aí há um desequilíbrio, porque o olhar da mulher percebe coisas que o homem não percebe. É importante que essa leitura seja estimulada o mais possível (MESTERS, 2021).

Se tivéssemos que resumir numa frase o que é a Teologia da Libertação, essa seria: Opção pelos Pobres! Sua marca nestes 50 anos de ortopráxis é a opção pelos pobres e a espiritualidade libertadora, contra toda a pobreza, a favor da vida, da justiça e da liberdade. O que move a Teologia da Libertação é o seguimento à Jesus de Nazaré, sua pedagogia, sua prática e sua espiritualidade libertadora.

Ao reler estes clássicos da literatura teológica fico com a impressão de retornar às fontes para junto com outras teólogas e teólogos da libertação, refundar a Teologia da Libertação. Ela é um dos motores desta Igreja em saída, proposta pelo Papa Francisco, pois a TdL sempre está em saída, pois nestes anos todos de sua existência, sempre pregou uma mensagem profética, samaritana, de cuidado, de solidariedade e de esperança. Essa foi a contribuição que Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff nos presentearam, agora, é a nossa vez de tocar em frente nos próximos 50 anos.

No auge das controvérsias contra a Teologia da Libertação (ainda hoje há perseguições e inverdades) uma palavra de diálogo, de encontro e de respeito, encheu de esperança todas aquelas pessoas que experimentavam no cotidiano das Comunidades Eclesiais de Base a Teologia da Libertação. Concluo relembrando as palavras de São João Paulo II[6], que em 9 de abril de 1986 dizia aos bispos do Brasil:

Na medida em que se empenha por encontrar aquelas respostas justas-penetradas de compreensão para com a rica experiência da Igreja neste País, tão eficazes e consonantes e coerentes com os ensinamentos do Evangelho, da Tradição viva e do perene Magistério da Igreja – estamos convencidos, nós e os Senhores, de que a Teologia da Libertação é não só oportuna, mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa – em estreita conexão com as anteriores – daquela reflexão teológica iniciada com a tradição apostólica e continuada com os grandes padres e doutores, com o magistério ordinário e extraordinário e, na época mais recente, com o rico patrimônio da Doutrina Social da Igreja, expressa em documentos que vão da Rerum novarum à Labores exercens (JOÃO PAULO II, 1986, p. 6).

Que uma autêntica Teologia da Libertação seja sempre pensada e experimentada por todas as pessoas que sofrem algum tipo de violência, fazendo ecoar sua voz, seu grito, sendo semente neste chão adubado com o sangue dos/as mártires da caminhada latino-americana e caribenha. Comprometer-se com os pobres é comprometer-se com a abundância da vida para todo o Povo de Deus.

 

*Doutorando e Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Agente de Pastoral Leigo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Cobilândia, Vila Velha, Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo. Pelo CEBI publicou Utopia Poética (2007) e Espiritualidade da Libertação Juvenil (2015).

 

[1] As citações feitas neste artigo são da tradução em português da obra de GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação – Perspectivas. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

[2] As citações feitas neste artigo são da obra de BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador: Ensaio de Cristologia Crítica para o nosso Tempo. 20.ed. Petrópolis, Editora Vozes, 2009.

[3] Cf.: SBARDELOTTI, Emerson. Por uma Igreja dos Pobres: Teologia da Libertação. São Paulo: Fonte Editorial, 2019.

Cf.: SBARDELOTTI, Emerson. Teologia da Libertação: 50 anos de uma experiência pé no chão! Encontros Teológicos, Florianópolis: v. 36, n. 2, maio/ago. 2021, p. 391-412.

[4] “Até quando julgareis injustamente favorecendo os culpados? Sede juízes para o fraco e o órfão, fazei justiça ao infeliz e ao indigente; libertai o fraco e o pobre, livrai-os da mão dos culpados (TEB, 2020).

[5] MARIN, Pe. Darci Luiz. Bíblia é luz e força (Entrevista com Frei Carlos Mesters). Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/artigos/entrevistas/biblia-e-luz-e-forca/. Acesso em: 02 dez. 2021.

[6] JOÃO PAULO II. Mensagem do Santo Padre ao Episcopado do Brasil – Roma, 9 de abril de abril de 1986. São Paulo: Edições Loyola, 1986.

 

Fotos:  arquivo pessoal do autor

legenda foto de chamada, “Leonardo Boff e Emerson Sbardelotti”, durante o II Congresso Continental de Teologia (outubro de 2015 – Belo Horizonte/MG).

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