Artigos e Reflexões

Dom Helder Camara, Profeta da Claridade, da Justiça e da Alegria

Dom Sebastião Armando Gameleira Soares*

 

Lembro-me de que numa roda de conversa ele nos contava que o pai, no dia de seu nascimento, foi ao dicionário e se encantou com a palavra “Helder”, que, em holandês, sugere o sentido de claridade, luz, façanha, heroísmo. Nessa mesma conversa acrescentou: certa feita alguém me perguntou como em meio a tantas dificuldades sempre pareço uma pessoa alegre. “Como não ter alegria se nasci justamente numa terça-feira de Carnaval?” E abriu um largo sorriso. Todos os anos, blocos carnavalescos populares o homenageavam no pátio da Igreja das Fronteiras, logo após a celebração da “santa missa”, como costumava dizer. E ele se divertia ao acolher o povo que nesses dias ocupa a cidade e se veste de nobres. Era, sem dúvida, bonita novidade: terminada a missa, o passo solene do frevo ocupava o “terreiro” na frente da aconchegante igrejinha, para comemorar com transbordante alegria a vida do querido Arcebispo e Profeta do povo. Como dizia Dom Marcelo Carvalheira, no sermão da missa campal por ocasião do sepultamento do Dom, “nas Fronteiras romperam-se todas as fronteiras”.

Quem já teve a felicidade de ler suas cartas da Vigília pôde constatar como “o Criador e Pai” era a fonte última e mais íntima de sua alegria e inspiração poética. De fato, gostava muito de poesia e de música. Quem, por exemplo, seguia seus movimentos lembra-se das “noitadas” que promovia com grupos diversos no “Palácio dos Manguinhos” que, com ele, passou de residência episcopal a sede de escritórios diocesanos para atendimento aos movimentos da Ação Pastoral e da Ação Social, como a Operação Esperança e o Banco da Providência, por exemplo. As “noitadas” eram momento de diálogo e discussão sobre problemas da atualidade em diversos campos do saber e da ação: Filosofia, Teologia, Política, Pastoral, Ciência e Literatura, e encontros com a Juventude…

Conta-se que a famosa cantora carioca Elizeth Cardoso, que era sua amiga desde os tempos do Rio de Janeiro, chamava-o ao telefone simplesmente para cantar pra ele. Que maravilha! Quando morreu de repente, ele foi uma das primeiras pessoas a ser avisada. Não era tão raro encontrá-lo. Ele, alguém tão ocupado, na entrada ou saída de cinema ou teatro. Sua veia poética pode ser constatada nos textos do programa de rádio “Um olhar sobre a cidade” na Rádio Olinda, em suas cartas da Vigília, até se expandir na bonita e eloquente “Sinfonia dos Dois Mundos”.

Nos fundos bolsos da batina creme tinha sempre umas balas para crianças de rua e trocados para mendigos e prostitutas, que por ventura o abordassem pela calçada. Mendigos e prostitutas lhe contavam “causos” e lhe falavam de situações escabrosas, ou lhe falavam de seu aniversário justamente naquele dia, mesmo que “aniversariassem” mais de uma vez no ano, com expectativa de ganhar algum trocado de presente. Quem o acompanhava costumava chamar sua atenção por se deixar tão facilmente enganar. “O senhor não percebe que essa pessoa estava mentindo? E ele com um sorriso de cumplicidade costumava observar: “Veja, essa pessoa já não tem nada na vida e, mesmo assim, você quer lhe negar o último direito que ainda lhe resta, o direito de mentir”. Ou então com um sorriso dizia: “Valeu a pena gratificá-lo (ou gratificá-la) pela criatividade de encenar o teatro”. Ao caminhar pelas calçadas, aceitava sem medo a carona que se lhe oferecesse.

É incrível constatar como alguém tão odiado e perseguido e tão ameaçado como ele durante toda a sua vida e sobretudo nos sombrios tempos da ditadura de 1964, conseguia vivenciar cada dia o dom da alegria e da paz. Até as formigas eram incluídas na sinfonia da Natureza e aconselhadas a não destruir as flores do pequeno jardim.

É importante lembrar que a perseguição já vinha de longe. Teve de deixar o seu Ceará e se mudar para o Rio de Janeiro. Não era bem visto por camadas mais ricas da sociedade quando no Rio lutava e trabalhava para que as favelas fossem realmente integradas na Cidade Maravilhosa. E hoje temos a prova de quanto ele tinha razão… As elites econômicas não toleravam sua pregação e seu estilo de pastor do povo do Recife, com a atenção particularmente voltada para as favelas e “ocupações” na periferia.  A Comissão de Justiça e Paz era vista como subversiva. A liderança do Dom entre os colegas bispos do Nordeste era facilmente percebida, e na própria CNBB da qual tinha sido o idealizador lá pelos anos cinquenta e tendo sido por anos o Secretário Geral. Isso claramente incomodava os poderosos e até era criticado por irmãos no episcopado. É preciso que se diga que não só foi perseguido por poderosos ricos e políticos, mas por poderes de sua própria Igreja que nem sempre conseguiram compreender seu ministério eminentemente profético. Em meio a tanta hostilidade e ameaças, permanecia sereno, sempre cheio de ânimo e de ideias.

Dizia que o segredo de sua vida se achava na Vigília da Madrugada e na celebração da Missa de cada dia: “Ao longo da jornada, me espalho em pedaços, na Vigília da Madrugada e na Missa recolho-os em Deus cada dia”.

Costumava dizer: “Mil vidas eu tivesse, mil vezes eu seria padre”. Sem dúvida, esse testemunho era confirmado na sua vida de inteira consagração. Mas numa de suas passagens por Roma, por ocasião do Concílio Vaticano II, tivemos ótima conversa com ele, que muito nos ajudou a ver com mais clareza o que estávamos sonhando como projeto de vida. Éramos um grupo prevalentemente do Nordeste e estávamos em Roma para nos preparar em Teologia. Já não estávamos seguros da vocação para padre, mas desejávamos aprofundar a Teologia para ajudar a Igreja a implementar os novos horizontes rasgados pelo Concílio Vaticano II. Dom Helder nos compreendeu e nos ajudou a refletir. Ressaltou particularmente o fato de querermos assumir a condição de leigos capacitados em Teologia para ajudar a Igreja a levar à prática os horizontes abertos pelo Concílio.

Fiquei encantado quando numa conversa pessoal com ele, logo depois do momento coletivo, fez-me uma espécie de confissão. Falou mais ou menos assim: Sempre costumo dizer: “Mil vidas eu tivesse, mil vezes eu seria padre”. Continuo a viver com a mesma intensidade essa doação, mas hoje faria uma pequena correção: “Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria. Imagino que assim estou permitindo a Deus Sua plena liberdade em minha vida” Que beleza!

Sabemos que sua casa era lugar do encontro entre o céu e a terra, desde as formigas e as flores até a Vigília e a Missa. Era como se se elevasse entre céu e terra. A Santíssima Trindade, os anjos (um deles, seu anjo da guarda, tinha nome, era José). A Virgem Maria, São José e seu grande patrono, São Francisco… Desse último assimilou particularmente a pobreza, a oração e a poesia. A austeridade de vida foi praticada em plena aliança com os pobres da terra. Pobreza, oração, simplicidade e coragem, fidelidade à Igreja como ela é, mas, ao mesmo tempo, ‘’’chamá-la de volta a ser fiel ao Primeiro Amor, como aconteceu com São Francisco.

 

* Bispo Emérito da Igreja Anglicana

 

Foto : Evelson de Freitas/FolhaPress

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