Por Magali Cunha*
As ações da Organização das Nações Unidas (ONU) pelo Fim da Violência contra as Mulheres, em desdobramento da Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim, 1995, incluem a campanha anual “16 Dias contra a Violência de Gênero”. A articulação começa em 25 de novembro, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, e termina em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
No Brasil, a campanha ganhou uma extensão e se tornou “21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, ao incluir o 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra. A articulação brasileira reforça a necessidade de consciência e ação diante da dupla agressão sofrida pelas mulheres negras.
O tema internacional para a campanha em 2021 é justamente “Da Conscientização à Responsabilidade”. Ela é empreendida por diversos atores da sociedade civil e do poder público no mundo, tendo como objetivo maior conscientizar populações sobre os diferentes tipos de agressão contra meninas e mulheres em todo o mundo. Entre estas agentes estão as igrejas.
O Conselho Mundial de Igrejas (CMI), desde sua fundação em 1948, promove os direitos das mulheres em estreita colaboração com religiosos e parceiros da sociedade civil em todo o mundo. Em 1953, o programa Mulheres na Igreja e na Sociedade do CMI teve início, com a proclamação de que a renovação da vida digna após a Segunda Guerra Mundial só seria possível se as mulheres fossem parte ativa de todas as iniciativas de justiça e paz das igrejas na sociedade.
A ênfase do CMI no século 21 permanece nos direitos das mulheres e seu lugar nos diferentes contextos do mundo. A construção de “Comunidades justas de mulheres e homens”, se tornou uma prioridade para esta associação que reúne 350 igrejas e organizações cristãs em todo o mundo (incluindo representações do Brasil). A 10ª Assembleia do CMI, na Coreia do Sul, em 2013, reconheceu, em relatório, que questões que dividem a humanidade e as igrejas, como gênero, têm um lugar central no organismo, que atua “como um espaço seguro para estabelecer diálogo e discernimento moral sobre questões que as igrejas consideram desafiadoras”.
As igrejas que visibilizam sua unidade no mundo defendem que as experiências, perspectivas e participação de mulheres e homens são igualmente necessárias para a renovação transformadora das igrejas e da sociedade. Relações justas de gênero são, então, apontadas como essenciais para uma resposta ao enorme desafio da sobrevivência da humanidade diante das mudanças climáticas, para se construir uma economia baseada na vida e se promover a paz justa e dignidade humana.
O CMI afirma que esta dimensão inclui a reflexão sobre o que a justiça e a paz implicam para homens e mulheres em situações desumanizantes – vítimas de guerra, genocídio, atos de intolerância religiosa, vítimas de casteísmo (discriminação por castas), injustiça racial, refugiados, mulheres traficadas e violadas sexualmente.
Nesta direção, o movimento “Igrejas para além das fronteiras” no Canadá, por exemplo, se organizou para a campanha 16 Dias pelo Fim da Violência de Gênero para chamar atenção de questões como: mulheres e meninas indígenas desaparecidas e assassinadas, tráfico de mulheres e violência doméstica.
Um material para ser utilizado em todas as atividades das igrejas do Canadá, durante a campanha e nos meses seguintes, inclui o clássico tempo litúrgico do Advento, as quatro semanas que antecedem o Natal (a partir de 28 de novembro, neste 2021). Por isso, as igrejas sugerem a ênfase na passagem da Bíblia “Cântico de Maria” (Lucas 1.38-55). Elas afirmam que as palavras de Maria, mãe de Jesus, oferecem esperança e convidam ao rompimento de todas as fronteiras que dividem igrejas e povos, em nome da superação da violência de gênero.
No Brasil, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) se uniu à Comunhão (Mundial) Anglicana para enfatizar a campanha em suas comunidades. Os 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres também são parte da agenda de atividades do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), de diversas organizações ecumênicas e de outros tantos movimentos católicos e evangélicos em atuação no Brasil, que têm a questão da justiça de gênero como ênfase de ação.
Vale celebrar este engajamento. No entanto, ainda há muito a se desenvolver nas igrejas sobre este tema no Brasil. Os números das muitas formas de violência (física, simbólica, psicológica, patrimonial, sexual) sofridas por mulheres sempre foram cruelmente altos. Um grande problema é que, como em outras partes do mundo, eles aumentaram durante a pandemia de covid-19 e a ONU vem chamando a atenção para isto.
A pesquisa do Instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostra números muito preocupantes. A investigação, divulgada em junho passado, mostrou que uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência, em 2020, no Brasil, durante a pandemia de covid. Isso significa que cerca de 17 milhões de mulheres (24,4%) sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano.
Na comparação com os dados de 2019, houve aumento do número de agressões dentro de casa, que passaram de 42% para 48,8% do total de registros. Cresceu a participação de companheiros, namorados e ex-parceiros nos abusos.
Estudos têm demonstrado que as igrejas no Brasil, em geral, reproduzem práticas culturais e desprezam a dimensão evangélica do valor às mulheres. Valor evangélico às mulheres não significa apenas a concessão de cargos e microfones para que falem e cantem. Valor evangélico às mulheres quer dizer também tomar para si as suas dores relacionadas aos efeitos maléficos da cultura patriarcal de submissão moral e exploração de seus corpos. As igrejas, na sua maioria, silenciam sobre estas questões e, em certas situações, acabam atuando para perpetuar a violência, reafirmando leituras ideologizadas que indicam ser a submissão das mulheres objeto da vontade de Deus.
Mais do que nunca, todas as igrejas precisam fazer valer o nome que carregam, sendo fiéis ao seguimento de Jesus, nascido de mulher, e trilhar os 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, ao lado do CMI, do CONIC, das Igrejas do Canadá e Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, das organizações ecumênicas e dos tantos movimentos católicos e evangélicos por justiça de gênero.
Só assim as igrejas darão vida às palavras do Cântico de Maria, a adolescente da periferia que se viu valorizada:
“Minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, pois atentou para a humildade da sua serva. De agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada, pois o Poderoso fez grandes coisas em meu favor; santo é o seu nome. A sua misericórdia estende-se aos que o temem, de geração em geração. O Senhor realizou poderosos feitos com seu braço; dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração”.
* Magali Cunha é jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. Pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER), colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas, está à frente de iniciativas como o Coletivo Bereia. Ela também escreve para a Carta Capital às quartas-feiras.
Imagem: Pixabay
Fonte : site do CONIC