Por Marcelo Barros*
Neste domingo, agências de notícias e a internet reproduzem a carta coletiva assinada por 152 bispos brasileiros sobre a catástrofe do desgoverno ao qual o Brasil está submetido nos dias atuais.
Para cidadãos/ãs não ligados à Igreja, esta carta veio revelar que a sociedade civil brasileira pode contar ao menos com uma grande parte dos ministros e de grupos católicos na tarefa urgente de tirar o Brasil do abismo em que se encontra. Não dá mais para avaliar o equilíbrio de forças no Brasil a partir do resultado das eleições de 2018, quando a maioria das pessoas que se dizem cristãs votou pela extrema-direita e a maioria dos que se dizem ateus votou pela democracia.
Para muitos cristãos, tanto da Igreja Católica, como de outras Igrejas, a palavra dos pastores veio trazer alento e confirmação no caminho de uma fé profética que exige posicionamento claro em um momento no qual calar significa ser conivente com um genocida internacionalmente reconhecido como responsável pela situação desastrosa do nosso país, tanto frente à pandemia do Covid 19, quanto às suas consequências sociais e econômicas. Sem falar no acirramento de um clima de violência e intolerâncias que diariamente ele fomenta na sociedade.
Ao ler este documento atual, quem viveu a inserção da Igreja Católica na vida e na realidade do Brasil do começo dos anos 70 e 80 não pode deixar de compará-lo com alguns documentos históricos que, naquela época, bispos da Igreja Católica no Brasil ainda conseguiam publicar.
É difícil imaginar como poucos anos depois da proclamação do AI 5 e sob os tempos mais duros da ditadura militar brasileira, em maio de 1973, 18 bispos e superiores religiosos do regional Nordeste II da CNBB publicaram o documento “Ouvi os Clamores do Meu Povo” em 1973. No mesmo ano, alguns bispos e missionários da Amazônia publicaram o documento de urgência: “Y-Juca Pirama – o Índio: aquele que deve morrer”. E poucos meses depois, seis bispos do Centro-oeste publicaram o texto “Marginalização de um Povo, o Grito das Igrejas” em 1974.
É claro que estes documentos tinham um tom profético de liberdade, que dificilmente textos mais oficiais e votados pelo conjunto do episcopado conseguem. No entanto, em 1980, ainda tivemos um documento oficial, aprovado em assembleia geral e publicado pela CNBB: Igreja e problemas da Terra. Neste texto, os bispos analisavam e denunciavam claramente os resultados do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro.Qualquer pessoa que analisar todos os documentos emanados do episcopado brasileiro na história, sejam documentos do conjunto do episcopado, sejam de grupos de bispos, vai concordar comigo que estes textos refletem o máximo da profecia social e política que nossos bispos alcançaram. Nunca houve algo igual ou mais contundente antes ou depois. Foram os documentos mais ousados e importantes, emanados da hierarquia católica no Brasil. Michael Lowy chega a declarar: “na verdade, esses documentos foram as declarações mais radicais jamais publicadas por um grupo de bispos em qualquer parte do mundo…” (Lowy, 2000, p. 145).
Provavelmente, a força dos documentos dos bispos do Nordeste e do Centro-oeste está no fato de que ambos os documentos têm uma linguagem simples e acessível à maioria das pessoas. Ambos se apoiam em dados sociais e econômicos públicos e conhecidos. Além disso, denunciam com clareza e dando o nome ao sistema capitalista. O documento dos bispos do Centro-oeste afirma diretamente: “O sistema capitalista é a fonte de todos os males que assolam a vida do povo”.
Agora, a atual carta é assinada por um número de bispos bem mais expressivo do que os 18 do Nordeste e os seis do Centro-oeste que assinaram os documentos de 1973. Só podemos desejar que estas denúncias claras contra o desgoverno que nos assola possam continuar por posicionamento claro destes bispos sobre os setores da nossa própria Igreja que apoiam esta iniquidade ou simplesmente ao se omitirem nesta hora a legitimam. E que uma porção assim tão significativa do nosso episcopado possa levantar sua voz profética para deixar claro que por trás do feitor que tortura os escravos está o senhor que nem mora no engenho, mas é quem financia e sustenta este sistema. Sem alertar a sociedade para o Império responsável pela desestabilização social e política de nossos países, nós sairemos de títere em títere sem termos voz e vez próprias. A América Latina, que na década passada, através de organismos de solidariedade como CELAC e UNASUL (sem falar no Mercosul) caminhada para uma integração continental se encontra de novo fragmentada e dividida.
Só podemos agradecer de coração aos nossos pastores sua palavra profética e esperar que eles nos ajudem a viver a vocação da catolicidade como caminho humano e social e não apenas como instituição eclesiástica.
- Monge Beneditino e assessor do CEBI.
Referências bibliográficas:
1 – LÖWY, MICHEL – A Guerra dos Deuses. Religião e política na América latina. Petrópolis: Vozes/CLACSO/LPP, 2000.
2 – MORAIS, J, F, REGIS – Os Bispos e a Política no Brasil. São Paulo: Editora Cortez/Editora Autores Associados, 1982.
3 – PESSOA, JADIR DE MORAIS – A Revanche Camponesa. Goiânia: Editora Universidade Federal de Goiás, 1999.