Artigos e Reflexões

O gênio da língua hebraica

Por Sebastião Catequista*.

Em todas as culturas a língua é um marco da expressão do povo. Ela exprime não só o seu jeito de se comunicar, mas também o seu gênio criativo. Não se trata apenas de falar, de emitir uma mensagem, mas de algo mais profundo: emitir todo seu sentido e potencial existencial.

A língua é o que mais caracteriza um povo, que exprime sua identidade, seu jeito de pensar a vida, de ver o mundo, de se expressar como humano e manter relações. São tantos os idiomas que exitem hoje no mundo com um vocabulário rico e que de mil formas exprime o pensamento humano e sua forma de estar nesse mundo.

Os povos da Bíblia são um rico ‘laboratório’ cultural quanto a esse tema. Especificamente falando do povo que a escreveu tercemos algumas anotações que ajuda na leitura e compreensão dos textos bíblicos feitos em nossas comunidades e grupos ou mesmo até na leitura pessoal.

1. A linguagem “nua e crua” do pensamento hebreu

O autor bíblico ao escrever o texto nos dá uma riqueza de detalhes de sua língua. De modo geral se pode perceber que ela é bem concreta e menos conceito. Ao exprimir o que pensa e sente não o faz seguindo uma “regra” com seus códigos linguísticos como nas línguas modernas. Ele é muito pontual, concreto e menos abstrato.

E não há outro jeito de dizer sua ideia ou exprimir o que sente, o que crer. Quando quer falar de proteção, de vingança, de amor, de sentido, de Deus, do auxílio divino, da dor, do seu descontentamento por algo, da paixão ou mesmo da vida enquanto bem-estar vai diretamente ao ponto sem abstrações.

Seu gênio criativo inclusive vai mais além das palavras para exprimir seu sentir. Usa de simbolismos e metáforas para poder comunicar. Ele não faz “conceitos vazios” como por exemplo, os gregos, usando da razão para “filosofar”. Sua linguagem é muito genuína e menos polida.

Isso se pode perceber por exemplo, nos textos bíblicos seguintes:

a) No salmo 63,2 o salmista assim exprime sua necessidade de Deus com muita intensidade e vivacidade:

Ó Deus, tu és o meu Deus, por ti madrugo. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra secaesgotada e sem água.

Perceba a intensidade com que usa as palavras grifadas (grifo nosso) para exprimir sua necessidade de modo concreto. As palavras por si não diz de sua profunda necessidade e expressá-la com figura de linguagem é muito mais concreta e direta. Que ideias as palavras sede, carne, desejo, ardor, terra, seca, esgotamento, água querem dizer? Ao mesmo tempo que exprime uma ideia de modo concreto o faz de forma linear e poética. Percebe?

b) Outrossim é o salmo 18, 2-4: aí o salmista expressa toda sua confiança em Deus a semelhança de uma rocha ou fortaleza que protege do perigo. É muito forte a ideia da segurança e de sua relação com Deus:

Ele disse: Eu te amo, Javé. Tu és a minha força! Javé, meu rochedo, minha fortaleza, meu libertador; meu Deus, rocha minha, meu refúgio, meu escudo, força que me salva, meu baluarte! Louvado seja! Eu invoquei Javé, e fui salvo dos meus inimigos!”

Veja nas palavras grifadas (grifo nosso) como elas expressam a ideia de segurança, força, proteção, refúgio, causando certamente bem-estar. As palavras em si enquanto conceito esteriótipo não diz muito, mas a ideia que elas representam vai mais além, fala da experiência vivida pelo seu autor. Veja como tal ideia exprime o que ele sente e como el a remete na sua relação com a divindade, o sagrado. Também podemos perceber uma intensidade vívida de sua crença e de sua religiosidade.

Poderíamos indicar outros textos mais, entretanto, creio que deu para entender o quanto o homem bíblico é muito vivo, intenso, e sua linguagem muito concreta. É uma “linguagem sem meias palavras” “curtas e grossas” como dizemos por aqui em nossa cultura, quando queremos ser claros, diretos, sem rodeios.

2. Seu simbolismo e metáfora

Um outro aspecto da linguagem e do homem bíblico é sua capacidade de se expressar através da simbologia e da metáfora. Os textos bíblicos estão cheios dessa forma de se comunicar e comunicar algo que vai além das palavras e conceitos. É o caso por exemplo, já nas primeiras paginas do Gênesis, a história da criação universal, do homem e da mulher, do bem e do mal nas histórias de violência contidas logo no começo com Caim e Abel, etc.

Os exemplos são inúmeros e vão desde sagas, lugares, objetos sacro, até a própria numerologia e transcendência. Podemos averiguar o texto por exemplo de Juízes 9,7-15. Recomendo que leia o texto.

É muito forte simbologias como a da videira, da figueira, bem como as metáforas espalhadas pelas histórias como, Jó, as falas dos profetas, e no próprio livro dos Salmos, Cânticos dos Cânticos, Jonas, Daniel, entre outros. Também os evangelhos e demais livros do Novo Testamento têm fortes elementos simbólicos e metafóricos.

Os que diferencia de outras culturas é que eles são pontuais quando trata da genialidade do povo hebreu. Eles sempre partem de uma experiência concreta que vai mais além sem divagar nos conceitos e ideias alheias ao que se quer demostrar. Por exemplo, o mito da criação contém uma verdade lógica, de compreensão inteligível mas que vai mais além de si mesma e não fica divagando em conceitos abstratos. Há uma realidade concreta papável que remete a algo mais profundo e, isso a torna diferente de tantos outros contos de mitos da criação.

O mesmo se pode dizer de várias e tantas passagens bíblicas (cf. Gn 49; Sl 49; Sl 90; Ez 37; Jo 2,1-12; Ap 12) que aqui não cabe comentar, pois não é o objetivo desse artigo. Contudo incentivamos a leitura destes textos como exercício para serem lidos sob essa perspectiva. E um bom dicionário de teologia bíblica ou um bom livro de comentário homilético podem ajudar.

3. A poesia na língua hebraica

Um outro elemento na língua hebraica muito forte, sensível à flor da pele é a poesia. São muitos os textos bíblicos que usa desse gênero para expressar a genialidade da alma desse povo. Há um olhar, um sentir mistico, um contemplativo nato em cada membro desse povo. A poesia está em sua alma assim como a respiração está para a vida. Sua fé e oração são simultaneamente musical, melódica, revestida de um senso muito fino. Desconfio que não há uma cultura assim em todo planeta. Evidentemente que os povos em sua cultura tem poesia, tem musicalidade na alma porque essa é inerente a condição humana, mas nenhum tem tanta criatividade e vivacidade como o povo hebreu bíblico. Ele respira, senti na alegria e na dor, na claridade da luz e na sua escuridão mais profunda a poesia. Sua interioridade se faz expressar-se nas notas da musicalidade poética. É algo impressionante.

Deus, a vida, a dor, a alegria, o senso de justiça, a eternidade, o próprio ser humano aí é desvelado com leveza, com sacralidade, com humor, com uma liberdade sem igual. As veias poéticas consegue passar toda a grandeza e toda baixeza do ser humano de forma impressionante. Não faz conceito, e nem trabalha as palavras em abstrato mas, descreve o âmago de cada coisa, pessoa ou realidade de forma profunda, encanadora, sem igual. Nua e crua! Senão, vejam por exemplo, esses versos do Cântico dos Cânticos 4,1-7. Quanto realismo e profundidade.

Como você é bela, minha amada, como você é bela!… São pombas seus olhos escondidos sob o véu. Seu cabelo… um rebanho de cabras ondulando nas encostas de Galaad. Seus dentes… um rebanho tosquiado subindo após o banho, cada ovelha com seus gêmeos, nenhuma delas sem cria. Seus lábios são fita vermelha, sua fala melodiosa. Metades de romã são suas faces mergulhadas sob o véu. Seu pescoço é a torre de Davi, construída com defesas: dela pendem mil escudos e armaduras dos heróis. Seus seios são dois filhotes, filhos gêmeos de gazela, pastando entre açucenas. Antes que sopre a brisa e as sombras se debandem, vou ao monte da mirra, à colina do incenso. Você é bela, minha amada, e não tem um só defeito!”

A nós ocidentais e de cultura moderna soa estranho e grotesco essa poesia, mas sua melodia, sua simbologia e sua metáfora revela uma amor intenso e um ser humano apaixonado que se declara para a amada. As categorias que ele usa a partir do seu cotidiano para lhe dizer algo é sem dúvida criativa e de muita quentura.

Isso corrobora o que desde as primeiras linhas e subtemas venho dizendo aqui a você caro leitor. É um mundo à adentrar e mergulhar na alma bíblica! E isso é o “sagrado” do texto. Toda a Bíblia tem esse “sagrado” que se desvela perante nossa ignorância débil e ocidental e que mostra o mais profundo de nosso existir, e de nossa sensibilidade espiritual que há no humano. É divino!

Há outros aspectos a considerar evidentemente, mas não é aqui o lugar. O fato é que, para um leitor da Bíblia e para uma catequese, sobretudo com os adolescente e jovens, é importante considerar esse aspecto bíblico pois ele nos ajuda a conhecer e exprimir através de nossa cultura hoje, sobretudo na música e na poesia moderna esse “senso” que é tão presente e vivo nas Escrituras. E a Liturgia cristã é muito rica nesse sentido pois tem como um dos fundamentos de sua originalidade esse fino senso da língua e cultura hebraica bíblica.

Apesar da literatura sobre esse tema ser um tanto escassa em nossas livrarias, é possível achar bons artigos e livros que nos ajuda a redescobrir a riqueza da língua bíblica hebraica e desse fascinante mundo.

Bibliografia consultada:

. Bettencourt, Estevão. Para entender o Antigo Testamento. Aparecida, São Paulo: Santuário, 1990.

. Bíblia Pastoral. Textos citados do site: http://www.paulus.com.br/biblia-pastoral/_INDEX.HTM

. Mannucci, Valério. Bíblia Palavra de Deus. Curso de introdução à Sagrada Escritura. São Paulo: Paulinas, 1985.

. Barros, Marcelo. Diálogos com Amor. Com os Salmos, orar o hoje do mundo. Belo Horizonte: Senso2019.

. Bronwn. Fitzmyer. Murphy, Raymond E. Joseph A. Roland E. Novo Cometário Bíblico São Jerônimo. Antigo Testamento. São Paulo: Paulus2018.

*Sebastião Catequista é membro do CEBI Pernambuco, do qual faz parte da sua coordenação.

 

Artigo extraído do site do CEBI Pernambuco :

http://www.cebipe.org/o-genio-da-lingua-hebraica/

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