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Fratelli Tutti: “Contra o individualismo, em favor a globalização da fraternidade.

Entrevista com Bartolomeo Sorge

 

Continuamos nosso caminho de aprofundamento da encíclica Fratelli Tutti. Hoje, entrevistamos o Pe. Bartolomeo Sorge, jesuíta, ex-diretor das revistas La Civiltà Cattolica e Aggiornamenti Sociali, duas prestigiosas publicações da Companhia de Jesus.

Pe. Sorge foi e é um protagonista da Igreja italiana. Grande estudioso da Doutrina Social da Igreja, publicou vários livros, incluindo um ensaio afiado, junto com a cientista política Chiara Tintori, contra o populismo.

A reportagem é de Pierluigi Mele, publicada em Confini, 17-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Fratelli tutti trata e atualiza o grande tema franciscano, no sentido de Francisco de Assis, da fraternidade universal. Qual é a relação, para além do nome, entre o Pobrezinho de Assis e o Papa Francisco? Podemos mencionar brevemente essa relação, antes de falar da encíclica?

Eu definiria a relação entre o Pobrezinho de Assis e o Papa Francisco como uma espécie de “afinidade evangélica”. A mesma escolha que ambos fizeram de viver o Evangelho sine glossa leva-os a compartilhar a mesma meta da fraternidade universal, como Jesus a viveu. Leva ambos a seguir e a indicar o caminho do diálogo para alcançá-la. Um diálogo entendido como um caminho feito juntos rumo a uma meta comum. Quando o Papa Francisco fala de “amizade social” ou de “ecologia integral”, convidando a abrir e a dialogar não só com cada ser humano, mas também com a criação, ele se coloca na mesma sintonia de São Francisco, que chamava de irmãos o sol e o fogo, e de irmãs a lua e a água, ou pregava aos pássaros e acalmava o lobo de Gubbio. Entre o Pobrezinho de Assis e o Papa Bergoglio existe uma plena sintonia que se expressa não tanto pela identidade do nome Francisco, mas pelo fato de ambos serem movidos pela mesma inspiração evangélica.

Falemos da encíclica. Trata-se uma verdadeira Summa do pensamento social do Papa Francisco. Portanto, há uma reproposição, em um quadro mais amplo, do seu ensino. Mas existem algumas novidades. Quais são elas, na sua opinião?

A verdadeira novidade é a própria encíclica, do modo como está estruturada. De fato, ela conecta, quase como peças de um único grande mosaico, as inúmeras intervenções do papa sobre os temas sociais mais candentes realizados por ele durante os sete anos de seu pontificado. Basta ver, em nota, quantas são as autocitações! Por isso, lendo a encíclica Fratelli tutti, tem-se a sensação de que o papa quis compor e completar uma trilogia com outras duas intervenções anteriores: a encíclica Laudato si’ e a Declaração sobre a Fraternidade Humana, assinada em Abu Dhabi. Na realidade, todos os três textos visam juntos ao mesmo fim: realizar a fraternidade universal; superar e combater o individualismo, para realizar uma “ecologia integral” ou – como o papa prefere se expressar – para passar da “globalização da indiferença” à “globalização da fraternidade”.

A encíclica foi publicada em tempos de uma pandemia devastadora. E ele a interpreta isso não como um “castigo de Deus”, mas como um sinal da natureza ao ser humano. Concorda?

Sim, é exatamente isso! O rosto de Deus, que Cristo revela no Evangelho, certamente não é o de um vingador ou de um justiceiro, mas sim o de um pai infinitamente bom e misericordioso! A pandemia é apenas um sinal – muito importante, porém – que a natureza envia ao ser humano. Por isso, seria um erro imperdoável desperdiçar a oportunidade que a dura prova sofrida hoje nos oferece de rever o nosso estilo de vida pessoal e social, de modo a superar as desigualdades sociais e culturais que a pandemia trouxe à tona ainda mais e que pesam principalmente sobre os mais pobres. Não podemos fingir que não vemos isso, nem virar a cabeça para o outro lado. É um desafio que interpela a todos indistintamente, sem exceções.

A pandemia, escreve o papa, nos fez sentir a pertença comum à família humana. “Estamos todos no mesmo barco”, afirma Francisco. Daí a proposta de uma ética da fraternidade universal. Em suma, todos devemos nos sentir como “samaritanos”. É muito bonita a reproposição da figura do “bom samaritano”. Quais são as características desse “samaritano global”?

A referência ao exemplo do “bom samaritano” é típico do estilo do Papa Francisco, que evita fazer discursos teóricos abstratos, mas prefere a concretude do testemunho. Assim, para demonstrar o que é e como se realiza a fraternidade universal, ele opta por fazer isso relembrando a lição que vem da parábola do bom samaritano. O papa explica as suas características, sobretudo quando fala da necessidade de uma “política melhor”, para passar da ideologia do individualismo, hoje reinante, à fraternidade universal. Para que a política seja “melhor”, diz ele em essência, são necessários “políticos melhores”, que se comportem como bons samaritanos. Em outras palavras, que atuem no serviço desinteressado pelo bem do povo, com competência e profissionalismo, como o samaritano do Evangelho, que derramou óleo e vinho sobre as feridas do infeliz e as enfaixou. Precisamos imensamente desses políticos “bons samaritanos”.

Liberté, egalité, fraternité. É o lema da Revolução Francesa. Para alguns filósofos seculares, o papa, com essa encíclica, “desposou o Iluminismo”. Concorda?

Para outros “filósofos seculares”, em vez disso, o papa teria “desposado o marxismo”, porque fez a opção preferencial pelos pobres e continua a defendê-la. Na realidade, o Papa Francisco não desposou nem o Iluminismo nem o marxismo, mas apenas Cristo e o seu Evangelho! Sem, por isso, negar que às vezes a cultura laica tomou consciência de alguns valores e de alguns direitos humanos antes da Igreja, embora esta gozasse da luz e do Evangelho! Penso, por exemplo, na liberdade de consciência, na liberdade de imprensa, na aceitação da democracia ou na tardia condenação da máfia, da guerra justa, da pena de morte… Mesmo que – é bom lembrar – nunca faltaram, no povo de Deus, vozes proféticas (muitas vezes silenciadas) que anteciparam tanto a cultura secular quanto o reconhecimento oficial da Igreja.

Na encíclica, há um duro ataque ao populismo e ao soberanismo (o papa se posiciona radicalmente contra quem ergue muros) de todas as latitudes. Mas ele também repreende a esquerda. Qual é a grande mensagem política da encíclica?

O magistério social da Igreja não se coloca na ótica da política “politicante”, da direita ou da esquerda (política com “p” minúsculo), mas na ótica da “melhor política”, tomada em sentido universal, cultural e ético (Política com “P” maiúsculo). Isso explica porque, no capítulo V da encíclica, dedicado inteiramente à política, o papa não se dirige aos católicos, mas aos políticos em geral, de todas as tendências e ideologias. Ele se dirige a eles (católicos e seculares) não como pertencentes a um partido ou outro (de direita ou de esquerda), mas simplesmente como políticos. Ele exorta a todos igualmente a se abrirem ao diálogo e à colaboração, a procurar a “melhor política”. De fato, para passar da globalização da indiferença à globalização da fraternidade, é preciso derrotar o individualismo, do qual nascem o populismo e o soberanismo. Esta não é uma utopia irrealizável. Durante a terrível pandemia, nós experimentamos que ela é possível. Deram prova disso os inúmeros cidadãos que se ofereceram para socorrer as pessoas infectadas pela Covid-19 até mesmo expondo a própria vida. Deu prova disso até a Europa, por ocasião do Conselho Europeu extraordinário de julho passado, quando, apesar da oposição dos chamados “países frugais” e dos “países de Visegrado”, a solidariedade fraterna da grande maioria dos 27 Estados da União derrotou o populismo e o soberanismo, aprovando um programa generoso de ajuda, com atenção especial aos países mais provados pelo coronavírus.

Na lógica da fraternidade, a encíclica toma partido contra o liberalismo. E propõe uma economia diferente. Sobre esse ponto, o papa não corre o risco de cair na utopia?

No ensinamento do Papa Francisco, é central a categoria do “sonho”, que é muito diferente da utopia. Se bem me lembro, foi Hélder Câmara quem afirmou que o sonho de apenas uma pessoa continua sendo um sonho, mas, se houver muitos que o sonham, então ele se torna realidade. É isso que a encíclica faz. Ela leva todos a sonharem com uma economia diferente, na qual não nos iludamos mais que os mecanismos de mercado podem resolver todos os problemas sozinhos. O mercado, é claro, é indispensável, mas não é suficiente. Também não é suficiente que o Estado intervenha junto com o mercado. Uma mesa com apenas duas pernas – mercado e Estado – não fica de pé! É necessária uma terceira perna, aquela que costumamos chamar de “Terceiro Setor”, ou seja, a participação responsável e voluntária da comunidade, da sociedade civil. Não é uma utopia, mas sim um sonho que a encíclica ajuda a tornar realidade.

Com a Rerum novarum, Leão XIII levou os católicos a se comprometerem para resolver a questão social. Aquela encíclica foi um “golpe de trovão” (metáfora usada por Bernanos). Atualizando a metáfora: hoje, a Fratelli tutti pode inspirar um novo programa político para os católicos? Ou, pelo menos, no pluralismo político dos católicos, pode ser uma fonte de discernimento político?

Fratelli tutti vem confirmar a virada que o Papa Francisco fez na doutrina social da Igreja. Leão XIII, com a Rerum novarum, pretendia salvaguardar a dignidade da pessoa e os seus direitos inalienáveis da armadilha de ideologias perigosas. Pio XI e Pio XII se confrontaram com as formas contrapostas de sociedades diferentes (socialismo real e capitalismo), propondo a “terceira via” de uma sociedade cristã. João XXIII, o Concílio e Paulo VI ampliaram os horizontes da Doutrina Social aos confins do mundo inteiro, denunciando as desigualdades entre o Norte rico e o Sul pobre. Com João Paulo II e o Papa Ratzinger, a questão social tornou-se sobretudo uma questão antropológica, porque foram postos em discussão temas éticos fundamentais, como o início e o fim da vida, a indissolubilidade do matrimônio, a contracepção, a “barriga de aluguel”… Com o Papa Francisco, a doutrina social da Igreja amplia ainda mais os horizontes: não olha só para os graves problemas induzidos pelos processos de globalização econômica, jurídica e política, mas também se abre para a questão ecológica e a proteção da “casa comum”. A encíclica Fratelli tutti confirma isso.

Última pergunta, sobre uma recente entrevista com o cardeal Ruini: para ele, a Igreja italiana está em declínio. Qual é a sua opinião?

Eu estimo o cardeal Ruini, a quem João Paulo II praticamente confiou a Igreja italiana, enquanto ele – papa gigante! – estava totalmente ocupado em levar o Evangelho a todos os cantos do mundo. Eu li a entrevista de Ruini ao Corriere della Sera. Como já disse em outra ocasião, nas palavras e nos juízos do cardeal, eu ouço o eco de uma temporada da Igreja italiana já distante e que eu também vivi, mas que hoje não existe mais, tanto porque o país mudou profundamente, quanto porque as aquisições doutrinais e pastorais do Concílio mudaram profundamente o rosto da Igreja.

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Matéria publicada n site do Instituto Humanitas-Unisinos/ADITAL

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