Por Felipe Magalhães Francisco*
Teólogos sérios precisam combater o uso instrumental da religião
O termo “cristofobia” não foi inventado por Jair Bolsonaro, apesar de este tê-lo usado em seu discurso na ONU. Sabe-se bem que uma onda evangélica fundamentalista, bem como um catolicismo ultraconservador e reacionário são parte elementar da base de apoio do atual presidente. No momento em que todo o mundo volta seu olhar em direção ao Brasil, dado o crescimento exponencial das taxas de desmatamento e das queimadas de nossos biomas, bem como o genocídio provocado pela má gestão do enfrentamento à Covid-19 no país, o presidente, diante do mundo inteiro, clama por ajuda para o combate a um mal imaginário, a tal da cristofobia. Jair Bolsonaro não falou ao mundo inteiro. Usou um palanque mundial para se dirigir à sua claque.
Teólogos e teólogas sérios, com criatividade pedagógica, precisam combater o uso instrumental da religião, para fins tão perversos. Falar em cristofobia no Brasil é um escarnio, quando cristãos e cristãs estão sendo perseguidos e mortos em lugares cujo fundamentalismo religioso extrapola a pregação. A Constituição de nossa República reza a laicidade, como garantia das liberdades religiosas. O atual governo usa e abusa de temas religiosos, para agradar a uma massa que não sabe distinguir a separação fundamental entre religião e Estado. No Brasil, o fundamentalismo religioso gera preconceito e perseguição às pessoas que não se conformam com uma visão unívoca do mundo e do ser humano.
Não existe, pois, perseguição aos cristãos e cristãs em nosso país: se houvesse, concessões públicas de rádio e TV não seriam largamente distribuídas para grupos religiosos proferirem os mais distintos descalabros em nome de uma fé equivocada, se comparada ao Evangelho. O contrário é possível de ser visto: evangélicos ligados ao tráfico de drogas destruindo terreiros de religiões de matriz africana, fruto amargo de anos e anos de pregação cristã que demoniza essas religiões. Pessoas religiosas agredindo pessoas LGBTQIA+ nas ruas, movidas por contínuas pregações religiosas que provocam ódio. Mulheres sendo coagidas a manterem relacionamentos abusivos, por leituras fundamentalistas do texto bíblico, o que faz manter um ciclo infindável de violência contra a mulher.
Cristãos e cristãs costumam encher a boca para dizer que são maioria. Costumam confundir democracia apenas com as opções feitas pela maior parte. Essa dimensão da maioria que vota é simplesmente um aspecto da democracia, mas não ela toda. A Política deve ser compreendida a partir da noção de bem-comum e os cristãos e cristãs, por obrigação da fé que professam, deveriam ser os primeiros a defender essa causa. Um dos pilares do cristianismo primitivo era a consciência da necessidade da renúncia ao status, que significa abrir mão do lugar de privilégio para fazer ascender aqueles e aquelas que são subjugados.
Cristãos e cristãs que entram nessa onda estapafúrdia de gritar contra uma pretensa “cristofobia” estão incorrendo em falso testemunho. Denunciam uma inverdade. A vitimização de cristãos e cristãs, reclamando uma perseguição da qual não sofrem, é anúncio de uma religião do antiDeus. O que cristãos e cristãs precisamos é redescobrir o frescor evangélico de nossa fé, rompendo com estruturas que causam morte e, por isso, colocam-se na contramão do Reino de Deus. Falta a virtude da humildade aos cristãos e cristãs que se esqueceram que seu líder e mestre morreu assassinado numa cruz, unindo à sua dor, o sofrimento de todos os desenganados e desenganadas do mundo. Cristofobia é lamento de quem ocupa uma posição de poder e privilégio e não sabe conviver com críticas e com o pensamento diverso. O que devemos combater é racismo, misoginia e machismo e lgbtfobia: essas violências, sim, clamam do chão a partir de tanto sangue derramado.
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: [email protected]
Artigo publicado no site Dom Total: https://domtotal.com/
Foto de chamada : GETTY Imagens/BBC Brasil