via IHU Online*
“Temos uma instituição bem organizada e estruturada, porém longe e distante do Evangelho”
José María Castillo é um dos nossos melhores teólogos. Durante anos perseguido e condenado por defender uma teologia popular, aberta e próxima aos pobres. Agora, a chegada do Papa Francisco supôs uma reabilitação completa para Castillo.
Não somente teológica, mas sim visível: o mesmo Bergoglio recebeu, e agradeceu a Pepe Castillo por sua teologia, em uma histórica jornada, que recordamos nesta entrevista em razão da publicação de “A religião de Jesus. Comentários ao Evangelho diário Ano C”, editado por Desclée. O futuro da Igreja e das religiões também expostas, com uma ideia clara: “O Evangelho não é uma religião e, portanto, o cristianismo, tampouco. É um projeto de vida.”
A entrevista é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, em 24-07-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eis a entrevista
RD: Sempre é uma honra e um prazer: Pepe Castillo, bem-vindo a sua casa.
JMC: Efetivamente, essa é uma prolongação da minha casa.
RD: Também é o que se pretende. Estamos tentando criar uma grande família no [sítio] Religión Digital, com vocês e conosco. Dentro dessa família sempre há crianças novas que vem e muito desejadas porque, aliás, este é um livro que fazes todos os anos e que já o temos aqui: “A religião de Jesus. Comentário ao Evangelho diário Ano C (2018-2019)”, de José María Castillo, no editorial Desclée. Sempre se escolheu umas fotos preciosas de crianças, nos últimos anos.
JMC: Sim, cuidam da capa, entre outras coisas. Já são onze anos seguidos.
RD: Não fica complicado? Ao final são três ciclos, não?
JMC: Sim.
RD: Isso é o que se repetiu, será o terceiro ou o quarto.
JMC: Claro. É uma das dificuldades que tem, a essas alturas, fazer esse livro e seus correspondentes comentários: que há perigo de se repetir. Eu tento superá-lo colocando muita atenção a uma coisa que me parece fundamental, e é a situação. Porque a vida vai mudando muito depressa e, ademais, em coisas muito profundas e muito importantes. E, portanto, responder as perguntas que a gente faz, ou aos problemas que a gente vive, me parece que é uma das coisas mais importantes que se podem fazer, na medida em que um livro desse tipo pode fazer.
RD: E o que nos diz o Evangelho sobre o que está passando no mundo hoje?
JMC: Nos diz que em questões muito fundamentais da vida este mundo derivou para outros interesses, outro problemas, e outra soluções que estão justamente na oposição ao Evangelho. Isso me parece importante. E o que quero adicionar é, ao meu modo de ver, o mais fundamental neste momento: a relação entre Igreja e Evangelho.
RD: Qual é essa relação? Que problemas temos nessa relação?
JMC: O problema essencial, a minha maneira de ver e tal como estou desenvolvendo em um livro que será lançado depois do verão [europeu] é que a Igreja, em grande medida e no fundamental, excluiu o Evangelho.
RD: Porém não seria a base sobre a qual se assenta?
JMC: Efetivamente, é a base; é o eixo, o centro. Mas, sem dúvidas, não é. Ainda que temos a sorte do atual papa.
O papa Francisco é um personagem singular na história do papado: é, pelo que sabemos, um Papa inteiramente original. Do meu ponto de vista, é um homem que sem dizer, em sua intimidade profunda, é o que ele tem marcado e como se programou. Mas o fato é que ele está mudando o papando. E o está mudando pela sua maneira de viver, sua humanidade, sobretudo, sua proximidade do povo, sua sintonia com os que ninguém sintoniza: as pessoas mais desamparadas e desgraçadas deste mundo.
Esse papa está mudando a situação: está mudando o papado e está mudando também o futuro da Igreja. Isso que quero destacar.
RD: É suficiente? Quero dizer: que não deixa de ser um homem diante de um mastodonte, como é a instituição eclesiástica, que luta com força e com ferocidade para não se fazer um haraquiri, para não desaparecer, no sentido de desaparecer as hierarquias, dos vínculos de poder, essa estrutura piramidal que deixa um pouco afogado o Povo de Deus.
JMC: Sim, isso é, porque no fundo há um perigo que é muito mais grave: não é nenhum segredo que o Papa tem grande, vamos dizer, inimigos na Igreja. E inimigos de muito alto nível. Não é só entre o mundo laical, político, econômico, social, intelectual…, mas sim o mais doloroso, no mundo eclesiástico.
RD: Os têm em casa.
JMC: Sim. Inimigos que quiseram tirá-lo do meio o quanto antes, ou que Deus o tire. Mas é um fato. E a raiz do problema, desde meu ponto de vista, está em que a Igreja desde suas origens mesmo tem sempre uma dificuldade, uma distância e as vezes uma contradição muito forte com o Evangelho.
Não esqueçamos uma coisa muito importante: o Evangelho não é simplesmente uma religião. Prova disso é que o protagonista do Evangelho, que é Jesus, matou a religião. E segundo os relatos do Evangelho, que afinal de contas é uma teologia narrativa não exposta em teoria, nem em doutrinas, mas sim em relatos de fatos da vida.
Essa recapitulação de relatos, que cada um dos evangelistas organizou e apresentou de uma maneira distinta, no fundo coincide em uma coisa essencial, e na qual, normalmente uma quantidade notável do mundo clerical resiste a reconhecer.
RD: E o que é?
JMC: Que o Evangelho não é uma religião e, portanto, o cristianismo tampouco. É um projeto de vida. E digo que não é uma religião pelo que já indiquei antes e não me cansarei de repetir: que nunca deveríamos esquecer que o Evangelho é a história de um conflito. Um conflito que terminou em morte e, isso sim que é curioso, o grande defensor e o que mais resistiu a matar Jesus, foi, segundo os relatos da paixão, o procurador romano.
RD: Sim, Pilatos.
JMC: O notável é que os mais empenhados em que deveria não somente mata-lo, mas além, mata-lo em uma cruz (isso é, de uma maneira mais cruel e mais humilhante e degradante que havia naquela cultura e naquela sociedade) eram os cargos máximos da religião.
A Igreja e o cristianismo se apresentaram, vivenciaram, organizaram e estão na sociedade como uma religião mais, custaram a desfigurar, deformar e esquecer o eixo e o centro do Evangelho.
RD: Então, e isso sempre discutimos, como consegue expandir a mensagem, o projeto-vida de Jesus, a todo o mundo, sem converter-se em uma religião que, ademais, está apegada a um poder? Porque sem o Império Romano, provavelmente essa expansão teria sido impossível. E sem determinadas ligações entre o poder e o religioso, seguramente a mensagem de Jesus não teria chegar durante séculos para tanta gente.
Essa é uma teoria do mal menor? Ou serviu durante uma época para expandir a mensagem, mas a instituição deveria ter se retraído, depois, de sua relação com o poder?
JMC: O que eu poderia averiguar lendo, estudando e refletindo sobre isso praticamente toda minha vida, porém sobre tudo nos últimos anos, é que há um processo que se provoca já desde o começo. Serei o mais breve possível: o primeiro é que as primeiras Igrejas se expandiram pelo Império sem conhecer o Evangelho porque o propagador principal daquelas Igrejas foi São Paulo. São Paulo não conheceu Jesus e, portanto, tampouco o Evangelho. O que ele viveu na famosa experiência no caminho de Damasco quando, dizem, se caiu do cavalo (ainda que a história não mencione nenhum cavalo), foi a experiência do Cristo ressuscitado. Portanto: Cristo já não é deste mundo, mas sim depois deste mundo; na plenitude de sua glória na eternidade.
RD: Então, parecia como as primeiras do PP, porque Paulo e Pedro (que Paulo sim conheceu e tratou a Pedro) já tinham suas batalhas como sobre tinha que ser isso. Parece um pouco Cospedal/Soraya.
JMC: Tiveram enfrentamentos por esses e outros motivos para os que agora não temos tempo. Porém o fato é que Paulo não conheceu Jesus. E mais, ele chega a dizer, na segunda carta aos Coríntios, que Jesus segundo a carne (ou seja, o Jesus humano) não entrou nos seus interesses. E segue: “e se alguma vez me interessei por isso, neste momento não me interessa nada”.
RD: A Igreja hoje é mais Paulo ou mais Pedro? O mais nenhum dos dois?
JMC: A Igreja não se reduz a Pedro e Paulo.
RD: Bem, mas como sintoma: se é uma Igreja mais espiritual, uma Igreja mais estrutura, ou tentando voltar mais às origens.
JMC: Se por Pedro entendemos a Igreja que provém do Jesus histórico, evidentemente o Evangelho é mais de Pedro. Enquanto que as cartas apostólicas que Paulo enviava a suas Igrejas por todo o Império, desde o Oriente até, dizem que chegou a Espanha. As elaborava Paulo desde sua experiência do transcendente, do Ressuscitado. Muito condicionado também por suas ideias de educação: se educou na cultura grega, está muito marcado pelo pensamento estoico e parece que pode se afirmar com toda garantia que tinha condicionantes de origem gnóstica. E tudo isso não é Jesus, é outra coisa e vai por outros caminhos.
O notável é que os evangelhos começaram a aparecer a partir do ano 1970, uns quarenta e tantos anos depois da morte de Jesus. Quando a Igreja já havia se organizado em comunidade e assembleias pelas grandes cidades do Império. Essa é a primeira dificuldade.
A segunda dificuldade é que as assembleias que organizavam as Igrejas de Paulo não tinham templos, nem tinham o que hoje chamamos igrejas, no sentido de edifícios. Se reuniam em casas, mas tinham que ser casas grandes e os que dispunham de casas assim eram os ricos e poderosos. Então que a Igreja se organizou em torno às casas das pessoas ricas, importantes e seus consequentes interesses.
O terceiro fato – que muita gente não sabe, nem se deu conta – é que nos primeiros séculos todo o Império era bilíngue: se falava, sobretudo, o grego, também o latim. Mas os evangelhos que se redigiram em grego, e o grego quem conhecia era o povo culto. Portanto, o povo de certo nível social, cultural, com todos os aditamentos que inevitavelmente isso carrega consigo. E os pobres que faziam? Pois o que sempre fizeram e seguem fazendo: ficam à margem.
A primeira tradução completa da Bíblia da qual se tem conhecimento, não é a do famoso patrólogo Quasten do ano 180, que já é bastante: seria quase um século e meio depois da morte de Jesus. Segundo Tertuliano, no século III é quando tem notícias dessa primeira tradução de toda Bíblia ao latim. Por isso, nos dois primeiros séculos o povo não podia conhecer o Evangelho.
Há um quarto fator muito importante: começo do século IV vem a famosa “conversão de Constantino”. A partir daquele momento, começam a conceder privilégios à Igreja.
Não me detenho nisso. Mas convém tê-lo em conta. E no mesmo século IV, já ao final, com o imperador Teodósio, que era originário do que agora chamamos Espanha (parece que era Aragão).
RD: Foi ele que declarou a Igreja como religião oficial do Império.
JMC: Claro. Teodósio foi o Imperador que deu um passo mais que Constantino, porque Constantino a permitiu, porém Teodósio declarou a única, e todas as demais passaram à clandestinidade. A partir desse momento, finais do século IV, até começos do século VI, se produz um fenômeno que foi estudado atenciosamente, muito documentado, por um dos homens mais competentes que temos nesse assunto. Provavelmente o mais competente em todo o mundo, um professor de Oxford que se chama Peter Brawn. Escreveu um livro que tem um título muito curioso: “Pelo buraco de uma agulha”. Porque é aquilo do Evangelho de que antes entre um camelo pelo buraco de uma agulha que entre um rico no Reino de Deus.
Esse historiador demonstra como desde finais do século IV, todo o século V e até começos do século VI, se produziu um fenômeno surpreendente: a entrada em avalanche da gente mais rica e poderoso na Igreja. A coisa chegou até o extremo que houve muitos casos de bispos nomeados sem estarem nem batizados. O caso mais conhecido é o do que foi bispo de Milão, São Ambrósio. Era catecúmeno, e de catecúmeno o consagraram bispo porque viram que era o único que podia governar uma Igreja ingovernável pela messe tinha. Isso se repetiu pela Gália e também na Hispânia Romana. Difundiu-se.
Essa entrada massiva de gente rica e poderosa na Igreja deu um giro completamente novo, se mantinha o Evangelho, mas não se vivia. E aqui quero insistir em uma questão que me parece capital: o Evangelho não é uma teoria, é uma forma de viver. E está presente na medida em que se vive. Se não é assim, teremos uma ou muitas teorias, inclusive há bastante ditos evangélicos que converteram em ditos populares, porém uma coisa é dizê-lo e outra vive-los.
E este é o grande problema da Igreja: que temos uma instituição bem organizada, bem administrada e bem estruturada, mas igualmente alheia e distante do Evangelho. Ainda que haja pessoas, movimentos e grupos que o vivem, que se esforçam em vive-lo. A mim me ocorre o tempo de Paulo VI, estando em Roma, o domingo de Páscoa de Ressureição, que fui à Praça de São Pedro, à missa do Papa. Fiquei ali dez minutos. Quando vi o espetáculo, impressionante, eu pensava: e tudo isso, que tem a ver com aquele de Jesus que nasceu em um presépio e morreu condenado como um delinquente?
RD: E encontrou uma resposta para isso?
JMC: Te asseguro que naquela manhã fui fazer um passeio pelas vielas de Trastevere, e ia dando voltas na mente “minha cabeça se foi? Estou louco? Ou aquela gente está louca? Como é possível que a história de Jesus tenha sido a origem disso”.
Aquele dia havia uma representação dos militares, aqueles que mataram tanta gente na Argentina. Havia representante de ditaduras da América Latina, da Europa… eu que sei! De todo o mundo, e estavam ali, na primeira fila…
Como me impressionou isso quando eu era estudante e foram meus pais, já maiores, a me ver em Roma. E ainda o Papa usava a cadeira gestatória, a tiara e todo aquele aparato de clarinetes, incensos, vestimentas…
Lembro que minha mãe (era muito boa mulher, mas nossos somos de um povo e de uma família simples), que não tinha uma cultura especial, ficou pálida. Lhe perguntei:
– Mamãe, te aconteceu algo?
– Estou pecando.
– Mamãe, por favor, estamos em São Pedro. Aqui não se peca, aqui se vem rezar ou se unir à Igreja.
E me disse minha mãe:
– É que eu recordo que o Senhor na única coisa que subiu foi em um burro. E olha como vem esse senhor!
RD: Que lição.
JMC: Aquilo me ficou cravado na alma e logo não parei de lhe dar voltas. E agora, nos onze anos que levo escrevendo isso dos evangelhos, não parou de pensar no mesmo problema.
Estou acabando já um livro que se intitula “O Evangelho marginalizado”. E que isso é uma dor, por isso o papa atual é uma benção. Porém ele lutando sozinho… Ainda que não está tão só, está muito condicionado. E isso que dizem de “porque não tira a todos e coloca outros” se responde logo: O papa tem que ter muito cuidado nisso, porque poderia se organizar um cisma.
RD: Os pontífices são possuidores de pontes, não destrutores de comunhão e, claro, é complicado. É muito difícil o trabalho que tem a frente Francisco.
JMC: É uma coisa extremamente complicada, e delicada: ser bom, mas ao mesmo tempo ser firme e coerente com todos. Harmonizar essas duas coisas é um autêntico milagre.
Faltarão anos e anos para que isso possa ir adiante.
Porém há coisas que não quero calar e aproveito esse momento:
Primeiro, já lhe disse, que o das famílias seria fundamental organizá-lo porque é uma lástima; a final de contas são milhares de pessoas os que ainda vão à missa. Poucas instituições tem tanta gente assegurada todos os domingos.
Outra coisa importante seria admitir como homens casados como sacerdotes. Ainda mais quando se sabe com segurança que foi uma tradição que se introduziu no século IV ou V.
E em terceiro lugar, o problema da mulher: porque não se permite que as mulheres possam ser sacerdotes igual os homens são. Aqui há uma questão maior de fundo: como com tanta frequência se confunde um fenômeno sociológico, cultural e histórico com um fato teológico?
Naturalmente a mulher nas culturas antigas estavam marginalizadas. E ainda vivemos resquícios disso. Porém se nos convencemos de algo, e a cada dia o vejo mais claro, é que uma sociedade que põe a mulher à margem não pode ir a nenhuma parte. E a Igreja tem que abordar esse fenômeno o quanto antes: a mulher tem os mesmos direitos que o homem, e também na teologia. E mais, lendo e relendo, estudando os evangelhos, uma das coisas que mais chamam a atenção é o cuidado requintado de proteção, de respeito e de defesa que teve Jesus com as mulheres, sempre. Foram judias ou de outras origens, e tivessem a conduta que tivessem. Jesus sempre as defendeu. Pois então vamos defende-las.
E o último que quero dizer é que eu não tenho boca, nem palavras, nem encontro argumentos para ponderar e agradecer ao papa Francisco o fato de que ele mesmo telefonara à minha casa, e que organizaria para que possamos nos ver e ter uma entrevista. Eu lhe disse:
– Olha, padre Francisco, você e eu somos dois jesuítas sem papeis, o mesmo que Diez Alegria, só que ele se saiu por cima e eu me sai por baixo.
E ele se ria. Depois lhe presenteei dois livros e me disse:
– Siga escrevendo. Não deixe de fazê-lo porque com isso faz bem ao povo.
Isso me fez mais bem que todos os pregadores, diretores espirituais, confessores, etc. que tive na minha vida.
RD: E vamos prestar atenção ao Papa, não? Siga fazendo.
JMC: Isso estou tentando. E ainda que eu tenha muitos anos, sigo trabalhando e seguirei trabalhando com ilusão enquanto a cabeça e o corpo aguente.
–
Entrevista publicada originalmente por IHU Online, com o título: ‘O Evangelho não é uma religião e, portanto, o cristianismo, tampouco. É um projeto de vida’. Entrevista com José María Castillo. Disponível no site do IHU Online.
Ilustração de capa: Retirada aqui.