Comentário do evangelho sobre Marcos 10,2-16, texto de autoria de Tomaz Hughes.
Boa leitura!
Durante sua caminhada rumo a Jerusalém, Jesus entra primeiro em controvérsia com os fariseus, os guardiães da prática fiel da Lei. Como sabemos, Jerusalém é o local do poder religioso e político do povo judeu. São estes poderes, em conluio com os romanos, que vão condená-lo à morte, no intuito de acabar, não somente com ele, mas principalmente com o seu projeto.
Os fariseus, que gozavam de muito prestígio diante da população mais simples, se outorgavam o direito de ser os únicos intérpretes autênticos da vontade de Deus, através da sua interpretação da Lei. Por isso, entram em conflito com Jesus, não na busca de conhecer melhor a vontade do Pai, mas, como ressalta o texto, “para tentá-lo” (v. 2). O campo de batalha escolhido era o debate sobre o divórcio. O texto de referência para eles era Deuteronômio 24,1-4, onde não se trata da legitimidade do divórcio, mas, dos critérios para que possa vir a acontecer.
O Evangelho de Mateus (cap.19), mais do que Marcos, deixa claro o sentido do debate (cf. Mt 19,1-9). O pano de fundo eram os critérios necessários para que um homem pudesse se divorciar da sua mulher (nem se cogitava que a mulher pudesse divorciar-se do marido, pois a mulher era considerada propriedade que pertencia ao homem). No tempo de Jesus, havia duas tendências, simbolizadas pelas escolas rabínicas dos grandes fariseus Hillel e Shammai. Uma escola, mais tolerante (Hillel), ensinava que se podia divorciar da mulher por qualquer motivo, mesmo dos mais banais. A escola mais rigorosa – de Shammai – só permitia o divórcio por motivos muito sérios. Por isso, Mateus define melhor a pergunta: “é permitido divorciar a mulher por qualquer motivo que seja?” (Mt 19,4).
Em ambos os evangelhos, Jesus se recusa a entrar no debate de casuística que cercava a questão e se limitava a reafirmar o projeto do Pai para o casamento: “Portanto, o que Deus uniu o homem não deve separar”. Jesus reafirma, com toda firmeza, o ideal do casamento cristão: uma união permanente, baseada no amor e fortalecida pela graça de Deus.
Seria inútil buscar, nesse trecho, uma teologia mais desenvolvida do casamento, ou orientações pastorais para os problemas práticos de casamentos malsucedidos. Essa não foi a intenção do autor. Marcos simplesmente reafirma o princípio de que “o que Deus uniu o homem não deve separar”. Deixa em aberto a questão de quando é que Deus realmente uniu o casal. Será que, só porque passaram por uma cerimônia celebrada na igreja, um casal é necessariamente unido por Deus? Os problemas reais são muito mais complexos, angustiantes e difíceis de serem solucionados. Por isso mesmo, convém que tenhamos uma postura misericordiosa e compassiva diante de quem se encontra nessas situações difíceis.
O trecho continua com a questão das crianças. A questão aqui não é a criança como símbolo da inocência, mas de dependência. As crianças e os que se assemelham com elas vivem essa situação de dependência, de “sem-poder”. Quem quer entrar no Reino de Deus terá que ab-rogar-se de todo poder dominador, tornando-se como uma criança.
Jesus se recusa a aceitar a situação em que a mulher era simples objeto de posse do homem e assim passível de ser divorciada. Ao propor o fraco e dependente como modelo em uma sociedade que valorizava o prepotente, Jesus mostra que os valores do Reino de Deus estão na contramão dos valores da sociedade do seu tempo e de hoje. Além da igualdade de dignidade entre homem e mulher, propõe também a fidelidade e o compromisso permanentes, a busca de uma vida de serviço e não de dominação.
De fato, é uma proposta no contrafluxo da sociedade pós-moderna que nega o permanente, perpetua o machismo e admira o poderoso e dominador. O texto de hoje nos convida para que andemos com Jesus na “contramão” e para que criemos uma sociedade baseada em outros valores do que os que estão hoje em vigor, às vezes, até no seio das próprias igrejas.
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Texto partilhado pelo autor (em memória).