Confira a reflexão do evangelho para o próximo domingo, dia 03 de junho. O texto fala sobre Marcos 2,23–3,6, e a reflexão pertence a Ildo Bohn Gass.
Boa leitura!
Como são duas narrativas, vamos por partes.
Jesus sobrepõe às leis o direito ao pão de cada dia.
“Nunca lestes o que fizeram Davi e seus companheiros quando necessitavam e tiveram fome?” (Mc 2,25)
Podemos encontrar o relato sobre as espigas arrancadas pelos discípulos de Jesus em dia de sábado tanto em Marcos 2,23-28 como em Mateus 12,1-8 e Lucas 6,1-5.
Nos vv. 25-26, Jesus lembra o motivo que levou Davi a pegar os pães reservados aos sacerdotes: a fome. Sua fome lhe dá o direito de fazer o que fez. Além disso, Jesus recorda que Davi também deu pão aos que estavam com ele. Com isso, quer destacar que o pão é “nosso”, não somente meu ou teu. Quer dar ênfase à partilha e à solidariedade promovidas por Davi. Isso revela sua compreensão coletiva quanto à natureza do pão. O pão não pode matar a fome de uma ou outra pessoa, mas de todo povo (Marcos 6,41-42). A proposta de Jesus é pão repartido, é pão para todos.
Num livro dos judeus da época de Jesus, chamado Mishná, havia 39 prescrições a respeito do que não se podia fazer no sábado. “As principais atividades são quarenta menos uma: arar, semear, colher, fazer feixes, debulhar, joeirar, catar grãos, moer, peneirar, amassar e assar pão, construir, demolir, apagar o fogo de um incêndio, atear fogo, bater com o martelo e levar uma coisa do lugar onde está para outro” (Mishná, tratado Sabbat VII,2).
De um lado, na ótica dos fariseus, como era proibido arrancar espigas e debulhá-las no dia de sábado, a transgressão dos discípulos foi uma questão religiosa. De outro, o delito também é de ordem econômica, uma vez que os discípulos violaram a propriedade privada ao entrarem naquelas plantações. O argumento de Jesus sugere que a questão econômica é que estava mais em jogo do que a questão puramente religiosa. Jesus não diz que Davi podia pegar aqueles pães, exceto no sábado. Ele diz que Davi não podia pegá-los, sob hipótese alguma, pois eram somente dos sacerdotes.
Em Deuteronômio 23,25, há uma antiga lei que autoriza uma pessoa que está com fome a entrar numa plantação do próximo e colher espigas. Porém, desautoriza sair carregando espigas. Pelas críticas que os profetas e mesmo Jesus fazem aos israelitas, sabemos que estes não estavam muito propensos a cumprir as leis que protegiam as pessoas mais frágeis da sociedade, como as viúvas e os órfãos.
Jesus sobrepõe à lei do sábado o direito à vida plena
“É lícito, no sábado, fazer bem ou fazer mal?
Salvar a vida ou matar?” (Marcos 6,4)
Na mesma perspectiva vai a narrativa da cura do homem com deficiência (Marcos 3,1-6) e que também podemos encontrar em Mateus 12,9-14 e Lucas 6,6-11.
Mais uma vez, está em questão a observância da lei do sábado. Para Jesus, porém, a função da lei é estar a serviço da vida das pessoas. O foco não é a observância da lei, mas o cuidado da vida e a prática da misericórdia com a ajuda da lei (Marcos 2,27; Mateus 12,7).
Por isso, a cura do homem de mão atrofiada é o que interessa a Jesus. Para ele, o resgate da integridade dos corpos das pessoas é parte essencial do projeto de Deus. Jesus não está preocupado com as leis que impedem a prática da misericórdia em qualquer dia, inclusive no sábado. Apesar delas, Jesus chama o homem de mão atrofiada, por isso, discriminado em seu tempo, para colocar-se ao lado da Torá, isto é, da Lei contida no Pentateuco, e que ocupava o centro da sinagoga. Imagine a reação das “pessoas de bem” ali presentes.
Não é por acaso que dois grupos dessas “pessoas de bem” reagem. Eles já estavam ali na sinagoga à espreita de um descumprimento da lei por Jesus (Marcos 3,2). O objetivo era acusá-lo, desacreditá-lo diante do povo, instaurar um processo para impedimento de sua missão e condená-lo à morte (Marcos 3,6).
Quem eram esses dois grupos. Um, o grupo político que dominava na Galileia, era formado pelos herodianos, isto é, Herodes e seus partidários (Marcos 3,6). Atrás deles, havia interesses do poder econômico e político internacional. É que Herodes governava na Galileia nomeado rei pelos romanos. Estes o consideravam “rei aliado e amigo do povo romano”. Era, portanto, um poder dependente do império.
O outro grupo era formado pelos fariseus. Estes representam um movimento religioso dentro do judaísmo da época. Uma de suas preocupações era o rigoroso cumprimento da lei. Estavam, portanto, preocupados em procurar em Jesus um desrespeito da lei, uma falha moral. Veja que o moralismo de hoje já vem de longe.
Portanto, grupos manipulados e a serviço de interesses estrangeiros se unem a setores moralistas presentes naquela sinagoga para derrubar Jesus e seu grupo. É que seu projeto era uma ameaça aos interesses das elites da época. Sua boa nova animava a esperança de quem vivia na pobreza, na doença, na exclusão. Para as elites, nem ontem nem hoje, o povo pode ter esperança por vida digna. Mas foi justamente para isso que Jesus foi fiel ao povo até o fim, isto é, para que todas as pessoas “tenham vida e vida em abundância” (João 10,10). Há alguma semelhança com o que vemos no país em nossos tempos?
Diante disso, algumas conclusões
- Para os fariseus, era mais importante observar as leis do sábado. No entanto, para Jesus, eram mais importantes a fome e as necessidades vitais das pessoas. Para ele, nenhuma lei pode impedir o direito fundamental à alimentação, ao que é necessário à vida, ao pão “de cada dia”. A necessidade de suprir a fome cotidianamente é prioridade número um para Jesus e está acima de qualquer lei. Toda lei, por mais religiosa que possa parecer, quando tem em vista impedir o acesso dos pobres ao pão, é desumana e contra a vontade de Deus. Portanto, não requer seu cumprimento nem a submissão obediente a ela. É a mesma perspectiva dos apóstolos quando disseram aos membros do sinédrio que “é preciso obedecer antes a Deus que aos homens” (Atos 5,29).
- Para Jesus, a economia (a barriga e a fome, o corpo e o alimento) adquire uma dimensão teológica densa. Por sua vez, a teologia assume significado econômico nas necessidades fundamentais da vida de cada pessoa. A economia é profundamente religiosa aos olhos de Jesus. E tudo que mata a fome é sagrado. Não é por acaso que os autores do livro de Rute chegam a dizer “que Deus tinha visitado seu povo dando-lhe pão” (Rute 1,6). Na mesma linha, Mahatma Ghandi dizia que, para um faminto, Deus não pode apresentar-se em outra figura senão a do pão. Também não é por acaso que Jesus, em sua oração, colocasse o pedido pelo “pão nosso” no centro, no coração dessa síntese de seu evangelho (Mateus 6,9-13). Portanto, Jesus desloca o peso que os fariseus punham no cumprimento da lei do sábado para a questão da fome, do estômago vazio. Aqui, convém lembrar que, ao Jesus propor os critérios básicos para seguir seu projeto de vida, a primeira atitude, entre outras, é “eu estive com fome e me destes de comer” (Mateus 25,35). Para Jesus, o direito à comida é o primeiro direito humano de toda pessoa.
- Por um lado, nenhuma lei pode ser absolutizada, tornar-se tirana, mas precisa levar em conta a vida concreta das pessoas, das mais fracas e menos protegidas. Por outro, nenhuma lei pode ser universalizada, aplicada de igual forma para todas as pessoas. É possível ter uma lei igual para todas as pessoas se nem todas têm igualdade de condições? Como é aplicada a lei em nosso país nos dias atuais? Para proteger quem? Em detrimento de quem?
- Jesus deixa claro que a função da lei é trazer benefícios para as pessoas, superando a fome (Marcos 2,23-28) e as deficiências (Marcos 3,1-6). É servir ao invés de resultar em prejuízos. Várias vezes, Jesus viola as leis referentes ao sábado diante de situações de fome e de doença (Marcos 2,23-28; 3,1-6; Lucas 14,1-6; 13,10-17; João 5,1-18; 9,1-12). Com isso, deixa claro que as leis são relativas e, ao mesmo tempo, são antievangélicas quando implicam em dano para as pessoas. “De modo que o filho humano é senhor também do sábado” (Marcos 2,28). Por isso, Jesus e todos os filhos da humanidade somos os senhores do sábado, enquanto este deve estar a serviço de todo ser humano.
- Como vimos acima, a prática de Jesus em favor da justiça e do direito das pessoas de superar a fome e ter um atendimento digno à saúde levou a conflitos. Os grupos moralistas da época (fariseus) e quem viu seus privilégios sociais, políticos e econômicos ameaçados (herodianos) logo reagiram e buscaram um forma de eliminar Jesus da vida pública. Por isso, precisamos hoje ter bem presente que engajar-se nas lutas por um país melhor, por um mundo melhor, também gera críticas e perseguição. Não somente por parte das elites de hoje, mas também de todas as pessoas possessas pela manipulação da mídia. E, quanto a essas últimas, temos uma missão importante: amorosamente, ajudá-las a ser livres, a tomar consciência de que não podem ser fantoches a serviço dos interesses de quem os oprime. Tarefa difícil, mas necessária. Jesus disse que “se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós, me odiou a mim” (João 15,18).
E disse ainda: “Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Felizes sois vós, quando vos insultarem, perseguirem e, mentido, disserem todo mal contra vós por minha causa. Alegrai-vos e exultai, porque é grande a vossa recompensa nos céus. A assim também perseguiram aos profetas que vieram antes de vós” (Mateus 5,10-12).
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Texto partilhado pelo autor, Ildo Bohn Gass. Ildo é biblista popular e assessor do CEBI.