via Agência Pública*
Nos últimos 15 anos, área de cerrado do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia foi alvo de grandes aquisições de terras por investimentos estrangeiros; em algumas regiões o preço do hectare teve índices superiores a 270% de valorização real.
“A aquisição de terras de um país por governos e empresas estrangeiros é um processo que ocorre há vários séculos, porém, podemos detectar fases específicas nas diferentes histórias e geografias destas aquisições. Uma mudança importante teve início em 2006 e foi marcada por um rápido aumento no volume e na expansão geográfica das aquisições estrangeiras.” Assim a socióloga holandesa-americana Saskia Sassen, professora da Universidade de Columbia e da London School of Economics, uma das principais pensadoras sobre o tema, inicia o segundo capítulo do livro Expulsões (Paz e Terra, 2015), intitulado “O novo mercado global de terras”.
O processo descrito por Saskia parte de levantamentos com diferentes metodologias que detectaram a presença cada vez maior do capital estrangeiro na aquisição de terras, inclusive no Brasil. Dados de 2016 da plataforma Land Matrix, que monitora grandes aquisições de terras, revelam que, de 2000 a 2015, 42,2 milhões de hectares foram negociados por empresas estrangeiras, sobretudo no Sul global – o número também inclui intenções de compra. Desse total, 26,7 milhões de hectares foram efetivamente comprados em um total de 1.004 transações nos 15 anos cobertos pelo relatório. O Brasil está entre os cinco países com maior área envolvida nessas transações, junto com a Rússia, Indonésia, Ucrânia e Papua-Nova Guiné. Somadas, as áreas negociadas pelos cinco países representam 46% das compras de terra arável levantadas pela Land Matrix. Usando outra metodologia, a ONG Grain contabiliza 28,9 milhões de hectares envolvidos em transações em 79 países desde 2008. O processo de apropriação de grandes parcelas de terras em outros países pelo capital internacional foi batizado internacionalmente de “land grabbing” (“apropriação de terras”, numa tradução livre).
No Brasil, o Mato Grosso e o Matopiba são as regiões preferenciais de grandes aquisições, de acordo com Márcio Perin, coordenador da área de Terras da consultoria Informa Economics IEG/FNP, referência na análise dos preços e transações de terra no país. A região de cerrado entre o Maranhão, o Tocantins, o Piauí e a Bahia, considerada a última fronteira agrícola do país, foi delimitada pela Embrapa e o Incra como alvo de um projeto de desenvolvimento agropecuário defendido pela senadora Kátia Abreu (PSD-TO) junto à presidente Dilma, que assinou o Decreto 8.847, de maio de 2015, estabelecendo formalmente o Projeto Matopiba. Em um discurso inflamado, em outubro do ano passado, a senadora criticou duramente em plenário a decisão do governo Temer de extinguir Departamento do Matopiba da estrutura do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
A região reúne unidades de conservação, terras indígenas e comunidades tradicionais do cerrado afetadas pela valorização das terras e pela agricultura de larga escala. O processo de especulação de terras e de expansão do agronegócio na região, bem como a violação de direitos humanos decorrente desse choque, veio à luz em um relatório produzido pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, divulgado em fevereiro deste ano. Foram os dados desse relatório que serviram de ponto de partida das três reportagens que compõem esta série sobre o Matopiba, feita pela Pública.
Por que a corrida por terras?
A alta do preço dos alimentos e a crise financeira global de 2008 estão entre os fatores apontados por especialistas como Devlin Kuyek, pesquisador da Grain, para a busca por terras em países do Sul. “Isso está relacionado à crise dos preços dos alimentos em 2007 e 2008 e à crise financeira internacional, que começou pouco depois”, disse em entrevista à Pública.
“A crise do preço dos alimentos encorajou países ricos e dependentes de importações de alimentos a incentivar suas empresas a adquirir terra em outros continentes para produzir comida. A crise de 2008 motivou players do mercado financeiro a buscar a terra como uma alternativa mais segura para destinar seu capital diante da volatilidade do mercado de ações”, explicou.
A alta do preço dos alimentos referida por Kruyek aparece nos dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), vinculada à ONU. Entre 2000 e 2008, o preço dos cereais quase triplicou. Dados do Oakland Institute, do período entre 2005 e 2008, também registram alta – 83% – puxada pelos preços do trigo, do milho e do arroz. A terra, por sua vez, é considerada um ativo seguro na incerteza dos mercados pós-crise de 2008. “A terra sempre foi vista como um ativo de baixo risco”, analisa Márcio Perin, da FNP. Como o ouro e as obras de arte, a terra é “tradicionalmente uma forma de reserva de valor”, diz.
O professor Sérgio Pereira Leite, do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), concorda com Perin. “Embora a terra não seja um ativo financeiro stricto sensu, como uma aplicação no banco, ela em geral consegue valorizar o capital nela investido mesmo sem necessariamente ser objeto de alguma atividade produtiva. Não é o ativo mais rentável, porém é um dos mais seguros.” Leite remete-se aos estudos do economista maranhense Ignácio Rangel, que, analisando a crise econômica dos anos 1980, já apontava para o fato de a terra ser um ativo financeiro seguro e independente da inflação. Além da alta do preço dos alimentos e da crise financeira, Leite aponta a crise ambiental e energética como fator relevante na busca por recursos naturais e fontes alternativas de geração de energia.
Saskia Sassen descreve a formação do mercado global de terras a partir do receituário do Fundo Monetário Internacional (FMI) para os países emergentes e dos programas do Banco Mundial, implantados no Sul global a partir dos anos 1970. A análise destaca também a pressão pelo levantamento das barreiras de exportação e importação pela Organização Mundial do Comércio (OMC), nas décadas de 1990 e 2000, como relevantes para o desenvolvimento desse mercado.
Essas medidas prepararam o terreno para as grandes aquisições de terra globalmente, diz a socióloga, que foram depois impulsionadas por outras demandas: por alimentos, biocombustíveis, pelo controle das águas, por madeira. Além disso, as políticas de abertura à circulação de capitais permitiram “o aumento abrupto das aquisições, por meio da relativa facilidade da execução formal de muitos novos tipos de contrato e pela rápida diversificação de compradores”, entre eles grandes bancos e fundos internacionais, como destaca Saskia.
O mercado global de terras no Brasil
Para o professor Sérgio Pereira Leite, o fenômeno do “land grabbing” no Brasil tem características próprias, como o fato de o país manter há décadas uma política de estímulos à agroindústria. “Durante os anos 1970 e 1980, por exemplo, o Estado brasileiro praticou uma política de crédito extremamente subsidiada, com taxa de juros real negativa. Ou seja, havia uma taxa de juros real menor do que a inflação.
O que acontecia: o tomador do empréstimo na realidade recebia, implicitamente, uma transferência de renda do Estado”, argumenta Leite. Para acessar essas benesses do crédito subsidiado, era necessário ser produtor rural, o que atraiu múltiplos atores – incluindo setores sem vínculo com a produção agropecuária, como o financeiro – a formar conglomerados agrícolas. Mesmo com variações, a política de subsídios à agricultura seguiu nas décadas seguintes em governos de diferentes lados do espectro político e permanece até hoje, atraindo os investidores para o país.
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Fonte: A reportagem é de Ciro Barros, publicada por Agência Pública, 18/05/2018. A Agência Pública é uma organização sem fins lucrativos. Todos os nossos textos podem ser republicados gratuitamente, desde que não sejam cortados ou editados.
Foto de capa: José Cícero da Silva