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A primeira vez que me dei conta que a Religião versava mais sobre poder do que da relação com o Sagrado, foi em uma aula de Antropologia do primeiro ano do curso de Ciências Sociais. Estudávamos os primeiros antropólogos do século XIX e o que me chamou a atenção foi a comparação entre a “religião imanente” dos “povos primitivos” que viam deuses nas pedras, rios, árvores e animais, com a “religião transcendente cristã” e europeia.
Em outras palavras, os “primitivos” acreditavam na natureza e os “evoluídos” num Deus que demandava razão para compreendê-lo. Descobri, então, que classificações fazem parte das sociedades humanas, e passei a questionar como a sociedade ocidental europeia e cristã desenvolveu suas classificações perversas e opressoras.
Depois me deparei com o fato de que a Ciência também é poder, um grande exemplo disso é a polêmica em que o Claude Levi-Strauss se envolveu com as feministas da década de 60: por que troca de mulheres? Por que não sistemas de casamentos? Ou outra nomenclatura qualquer? Era um homem branco europeu classificando uma sociedade do ponto de vista de um homem branco europeu.
Depois de uns anos nas Ciências Sociais, me dei conta de que tudo é poder e que as relações sociais são mantidas pelo e no poder.
Decidi expor esse pequeno relato, sobre a maneira que percebi que as relações são socialmente forjadas e que as relações entre “civilizados” e “primitivos”; “cientistas” e “estudados”, “padres” e “fiéis” não são naturais, por achar necessário mostrar para o leitor qual caminho que fiz até chegar à crítica das relações de gênero na religião cristã – a minha religião. O que antes, para mim, era natural, passou a ser construto social, relação de poder.
Nesta perspectiva, das relações de poder, existe um sistema de classificação muito importante na composição das relações sociais da nossa sociedade que é a separação entre homem e mulher, baseada na genitália de cada um. Esse sistema é primeiramente expresso na cor do enxoval, depois no nome, na certidão de nascimento e nunca mais para de se manifestar. Sempre haverá um lugar para o homem e outro para a mulher.
Contudo, não é só um sistema classificatório, é hierárquico, também. Homens e mulheres têm criações diferentes, oportunidades diferentes e permissões diferentes para o exercício do poder. Esse sistema classificatório-hierarquizante se manifesta em todas as esferas da nossa sociedade, pois é estruturante nas relações sociais e as religiões não estão imunes a esse sistema. Assim, em menor ou maior grau, as suas essências são afetadas pela opressão de gênero.
No campo da religião, existem inúmeras tensões, a começar pela disputa entre “as religiões aceitáveis” e “não aceitáveis”, essa é a primeira grande disputa de poder nesse campo. A segunda grande questão são as interdições, para exercer funções religiosas as pessoas têm que ter legitimidade e autoridade para exercício dos ritos religiosos e, haja vista a sociedade em que vivemos, as mulheres são impossibilitadas de exercerem grande parte de cargos e funções importantes. Há, aqui, uma intersecção importante: poder-religão-gênero.
Mulheres têm um sem número de interdições religiosas que as colocam em desvantagem frente aos homens.
A ordenação feminina na Igreja Católica e em muitas igrejas protestantes não é aceita, acredita-se que o sacerdócio é apenas para homens. As grandes personagens bíblicas femininas são apagadas dos púlpitos, das homilias e dos estudos bíblicos, quem já ouviu falar, por exemplo, de: Zípora, Agar, Rebeca, Miriam, Débora, Rute, Noemi, Ester, Raabe, Mulher Sunamita, Joana, Isabel, Priscila, Dorcas, Loide, Dâmaris, Maria de Betânia? Sim, existem mulheres na bíblia, mulheres chamadas à liderança, para funções de destaque na religião. A primeira grande missionária enviada por Jesus foi a mulher samaritana, mas porque elas são apagadas? Por que nós, mulheres, sempre somos apagadas?
Talvez devêssemos deixar a religião de lado? Deixar a experiência mística de lado, uma vez que ela nos inflige sofrimento? É justo que uma mulher tenha que abandonar a sua fé para alcançar respeito e dignidade? As (fé)ministas acreditam que não, para nós, o próximo passo necessário para combater todas essas relações machistas na religião é dar voz para as religiosas, para que possam falar o que pensam sobre a opressão de gênero em suas religiões.
Religião é poder, e estamos nessa disputa. Queremos ser protagonistas nos direcionamentos e decisões de nossos agrupamentos religiosos.
Março-denúncia
E com essa postura damos início ao março-denúncia da Coluna (fé)ministas, vamos discutir machismo nas religiões, e não vai ser pouco. Afinal, se acabássemos com a religião, o mundo deixaria de ser machista? Ou as religiões são machistas, porque as relações de gênero em nossa sociedade são machistas?
Esse trabalho não é fácil, pois o poder místico atribuído ao homem acaba por justificar arbitrariedades machistas em nome de Deus e é muito custoso para uma mulher apontar essas questões, pois o preço a pagar na maioria das vezes é a expulsão das igrejas e templos, o desprestígio e o afastamento de seus símbolos sagrados.
O que faz desse trabalho uma tarefa muito delicada, pois não é fácil se expor. O custo pessoal para cada mulher que aponta o dedo na cara do machismo eclesiástico é muito alto. Tivemos muito contatos com mulheres religiosas, mas poucas que toparam escrever.
A minha pergunta é: por que? Por que mulheres têm que ficar à sombra para se protegerem, para continuarem acessando o sagrado e exercendo a sua espiritualidade? Essa campanha abriu meus olhos para as concessões que feministas religiosas têm feito para continuarem cultuando seus deuses e entidades. Isso é justo?
Há uma década descobri que a Religião é poder, assim como a Ciência, a Economia, o Judiciário, a Política e queremos disputar esse lugar. Queremos liberdade religiosa, queremos que as mulheres não tenham que optar entre a religião e a liberdade de seus corpos, de suas sexualidades, de suas vidas. Queremos o poder de experienciamos a nossa fé sem sermos subjugadas, humilhadas e vistas como as pecadoras.
Basta de profanarem nossos corpos, a menstruação, a amamentação, o parto, nosso gozo.
Basta de enxergarem apenas as mulheres biológicas, queremos liberdade religiosa para todas nós, mulheres. Ser mulher vai muito além do biológico! Nós, as (fé)ministas nos juntamos ao coro de todas as feministas: dignidade da mulher, já!
Assim, convidamos as feministas não religiosas a nos ouvirem, a entenderem o quanto abrir mão da religião é custoso para nós, e compreendam que queremos aliar a luta feminista ao exercício da nossa fé. Queremos ser feministas religiosas e lutar por todas as pautas do feminismo: liberdade ao corpo, igualdade em oportunidades e respeito!
O campo religioso é de preponderante atuação masculina e tem muita importância na manutenção de tabus e interdições sociais. Queremos combatê-los e convidamos todas a se unirem a nós!
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Fonte: Texto de Simony dos Anjos, graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade. Publicado pelo portal Justificando, 09/03/2018.
- Conheça os livros do CEBI sobre a temática Gênero-Religião:
– Atos das mulheres: justiça, solidariedade, mística
– Pentateuco feminino
– Maria de Todas Nós
– Em Memória Delas
– As mulheres e o patriarcado nas comunidades paulinas
– Querida Ivone: amorosas cartas de teologia & feminismo
– Ainda Feminismo e Gênero
– Maria Madalena, a discípula amada