Uma das pilastras da vida evangélica é o reconhecimento de que todas e todos nós somos irmãs e irmãos em Cristo. Não deveria haver espaço para intolerâncias, sexismos, preconceitos, privilégios, especialmente no que diz respeito à misericórdia e à graça de Deus para com a vida no planeta.
“Não há judeus nem gregos, escravos ou livres, homens ou mulheres, todos somos UM em Cristo Jesus” (Gálatas 3,28).
Mas esse é um ideal a ser perseguido todos os dias. É um objetivo a ser reafirmado a cada manhã quando acordamos. Não é fácil. Isso vai contra o jeito patriarcal das sociedades se organizarem. Ser irmão e irmã no patriarcado é muito revolucionário. Ser irmã e irmão nos impérios é subversivo.
Nas primeiras comunidades, havia esse enfrentamento muito forte. Por um lado, o desejo de seguir Jesus, que já nos anos 80 estava enfraquecendo como projeto global das comunidades. Por outro lado, o desafio de sobreviver na convivência dentro do império em meio a pessoas de grupos sociais diferentes. Judeus tinham muita dificuldade de superar séculos de intolerância e “ensimesmamento”. O Evangelho segundo Mateus guardou bem esses conflitos entre judeus e não-judeus.
A parábola que lemos neste domingo em algumas igrejas possui duas partes. A primeira reflete bem o desejo de ser uma comunidade aberta a todas as pessoas. O reino dos céus é para todas as pessoas. A imagem da festa é muito apropriada e reflete que os “convidados tradicionais e de direito, isto é, judeus” não aceitam o convite. Então, o convite é feito para todas as pessoas que estão nas margens: más e boas, pagãs e judias. A violência do rei é expressão do que aconteceu pelos anos 70 quando Jerusalém foi destruída pelas tropas de Roma durante a guerra judaica naquele período. É uma adição difícil de ser engolida no contexto da parábola como tal.
A segunda parte, ainda com um tom de violência e exclusão, difícil de ser entendida, conta que, mesmo a festa sendo para todas as pessoas, um requisito era necessário para estar lá. Estar vestido apropriadamente. Pode ser uma alusão ao batismo, rito de passagem para tornar-se membro pleno da comunidade, onde você era “revestido do Cristo” para uma vida nova, abandonando sua vida antiga. Parece que tinha gente na festa que aceitou o convite, mas pela metade. Queria estar na festa com roupas antigas, estava apegada ainda ao passado e resistindo a “vestir-se apropriadamente” para essa nova etapa da vida. Por isso, o resultado é que não pode estar ali. Tem que voltar para fora e converter-se ao novo modelo de festa, onde todas as pessoas podem entrar. Mas, ao entrar, precisam estar com novos compromissos e novo estilo de vida. É o que a parábola chama de “estar vestido apropriadamente”.
Novos compromissos (festa de bodas – estar com a comunidade, ali representada pelo noivo/a) exigem da gente nova roupagem, nova atitude, novo jeito de perceber e se relacionar com a vida. Por isso, poucos são os “escolhidos”. A festa continua lá. Não está encerrada. Mas, para nela entrar, é necessário estar “vestido apropriadamente” (estar cristificado) e, assim, aproveitar-se da presença e da convivência com o noivo e a noiva.
A comunidade de Mateus, assim como a nossa hoje, precisa enfrentar esse conflito ético e estético comunitário, em termos de avaliação acerca dos compromissos que assumimos e a expressão (ou ausência de expressão) desses compromissos. Como vivemos e como nos comportamos? Como me relaciono comigo mesmo e com as outras pessoas? Que cuidado/relação estabelecemos com o planeta onde moramos?
Estamos ao menos conversando sobre tudo isso nas comunidades?
São desafios que o reino de Deus, conteúdo de nossa parábola, nos aponta. Quando não assumimos novos compromissos, frutos de uma nova espiritualidade, há ranger de dentes e escuridão, situações que necessitam de intervenção e mudança de vida para mudarem. O desafio é aceitar o convite, vestir-se do Cristo e olhar o mundo através de seu olhar de misericórdia, compromisso incansável e apaixonado por festas e novidades.