O desafio que está diante da humanidade nos tempos atuais, infelizmente, encontra ecos no Brasil, um País de desigualdades.
Contexto
Antes de ver os dados específicos religiosos é importante notar que a questão da violência no Brasil é muito grave, conforme se vê em alguns indicadores exemplares:
- O Brasil é responsável por 10% de todas as mortes por homicídio por ano no mundo;
- Uma pessoa negra no Brasil tem 2,4 vezes mais chance de morrer que uma branca (em 2012, foram mortas 29 negras contra 12 brancas por 100 mil habitantes). E os meninos jovens negros são muito mais vítimas, pois morrem 2,5 vezes mais que a média do conjunto da população negra e 5,9 vezes mais que a média da população branca. São cerca de 64 jovens negros mortos por dia no Brasil;
- Ao menos um indígena é morto a cada 3 dias, a grande maioria onde há criações e plantios para a exportação;
- Outras mortes por conflitos no campo atingem o número de uma a cada 5 dias;
- Morrem 15 mulheres por dia vítimas de violência, majoritariamente doméstica;
- Acontece um linchamento por dia no País;
- Um gay é assassinado a cada 2 dias;
- E os desastres ambientais, naturais ou provocados, em 10 anos, mataram cerca de 3.300 pessoas, sem contar o incalculável assassinato recente do Rio Doce (666 km ou 413 milhas, sem contar a área de mar atingida) e dos múltiplos modos de vida em seu entorno.
Cresce a violência por motivação religiosa em um cenário de mudança do perfil religioso da população, em 35 anos: os Católicos caíram de 89% para 64,6%, os Evangélicos cresceram de 6,6% para 22,8%, as Religiões Afro-brasileiras decresceram de 0,6% para 0,3%; as outras religiões cresceram de 2,2% para 4,9%; e os Sem Religião cresceram de 1,6% para 8%. A crítica das distorções estatísticas tem avaliado que o número para Religiões Afro-brasileiras é subnotado.
Nesse quadro de mudança religiosa, o crescimento evangélico é majoritariamente de caráter pentecostal, e entre esses, de uma maioria messiânica, salvacionista e pragmática, tanto no sentido da busca da eliminação do mal como da criação dos meios possíveis para isso: financeiros, de crescimento numérico, de representação política e de ocupação do Estado.
Desde 2011, o Brasil passa a ter um de registro nacional de denúncias de violências baseadas na fé (foram 726 casos anotados entre 2011 e 2015, uma taxa de crescimento de 460%), além de algumas pesquisas estaduais. Todos apontam para uma maioria (entre 60 e 70% dos casos) de agressões de “evangélicos” contra expressões de religiões afro-brasileiras, havendo anotações de conflitos com católicos e outros.
O alarmante desse tipo de violência, além do crescimento, em dois anos, a uma taxa de 60%, é seu perfil entre 2011 e 2015:
- Os casos de agressores são: 27% vizinhos, 5% professores, 6% pai ou mãe (4% mães) e 2,24% empregadores;
- Os casos de vítimas são: 17% crianças e adolescentes, 12% LGBT, 11% idosos, 9% deficientes, sendo 21% brancos e 35% negros.
É um perfil que atinge a vida cotidiana, as relações parentais, de vizinhança e o ambiente escolar. No geral, não escapa do ambiente nacional ao olhar-se o quadro da violência extrema. É uma violência racista, misógina e homofóbica (RMH).
Comentários analíticos adicionais:
Teologia e comunicação
É importante, localizados os contextos geral e religioso, evitar uma caricatura dos “evangélicos” como em si violentos e violadores de direitos. Mas, principalmente, identificar o crescimento de uma religiosidade em uma sociedade que tem problemas estruturais de violência e que mantém uma história racista, misógina e homofóbica. Os religiosos não inventaram a violência, mas crescer em um contexto que praticamente naturaliza a violência por Racismo, Misoginia e Homofobia (RMH), como se fosse uma cultura, coloca em xeque os pragmatismos de pregações que visam o crescimento de adeptos, admitindo suas visões de mundo e preconceitos.
É nessa mesma sociedade em que cresce a intolerância religiosa, que também se pode anotar que 87% da população é favorável à redução idade penal. Onde também alcançam altos índices de audiência os programas de TV e de Rádio de viés policial, pautados pelo horror e exposição do crime – que incitam ao uso da força como “solução” da violência.
Um dado significativo que se soma aos processos é o poder de comunicação, em aparatos televisivos e radiofônicos de cristãos que só reiteram as pregações prenhes do RMH que terminam por incitar a violência.
O que se pode iluminar com isso? Que as tendências teológicas pragmáticas vão se somar aos contextos de desigualdade e violência, reforçando estruturas e índices que mantêm ou acentuam a violação dos Direitos Humanos das minorias, religiosas ou não (o próprio conservadorismo).
Para resumir, de forma provocadora, a questão teológica, diria que o crescimento religioso tem se constituído por aqueles que se proclamam os legítimos identificadores do mal. Em suma, os identificadores dos diabos e dos seus sinais. As teologias sobre o diabo e as suas peripécias, formuladas por tradição oral ou por escritos e divulgadas nos templos em pregações e em atos de exorcismo, passam a ser o conteúdo apaixonado da mensagem messiânica. É óbvio que, em primeiro plano, esse discurso ilumina aos “evangélicos”, mas no universo cristão isso não é novidade e nem exclusividade histórica.
Fica a pergunta: se os legítimos identificadores do “diabo” atuam sem criticar o racismo, a homofobia e a misoginia, é surpresa que encontrem as manifestações das pessoas sujeitas desses contextos como encarnações do mal?
Está posto um desafio: afinal quem é o diabo e quem encarna o mal? Enfrentar esse debate passa a ser vital para a paz e o diálogo interreligioso, sabendo-se que esse não é um tema exclusivo dos cristãos e que também culturalmente, no Brasil, é um assunto que permeia o inconsciente coletivo da população em geral.
Ações de mitigação em curto prazo
O universo religioso tem se pautado pela afirmação da esperança ao mesmo tempo sem ilusões. Há esforços múltiplos em um contexto adverso em que o campo de valores coloca em xeque a própria Dignidade Humana. Naturaliza-se como fato a desigualdade, como se uns de nós merecêssemos privilégios, fossemos mais Dignos. A batuta conservadora a reger um concerto de argumentos de mérito justificando as mortes imponderáveis de pessoas consideradas de um nível abaixo da humanidade e do bem viver, efeitos colaterais da afirmação de falsas verdades: do capital, da salvação, da genética, da competição entre fracos e fortes e outras.
Os enfrentamentos são de caráter simbólico, de assistência social, de denúncia das violações de direitos, de incidência por políticas públicas…
Não é um universo fácil de trabalho. Sonhos e esperanças movem poucos por muitos. Pois, não devemos deixar de registrar a gravidade do enfraquecimento da sustentabilidade das organizações baseadas na fé e de outras da sociedade civil defensoras dos Direitos Humanos (DH) na sua integralidade – pela redução drástica de apoio financeiro internacional, pela redução grave de recursos públicos nacionais e pela continuada criminalização de quem defende os DH.
- Recomendamos a leitura:
A persistência do ódio na sociedade brasileira [Leonardo Boff]
A letra mata… o espírito vivifica: conflitos e identidades dos cristianismos originários
CEBI-SC Relações de Gênero versus Patriarcado e Capitalismo
CEBI-ES: Grupo Pluri-religioso debate a presença dos LGBT´s na religião
Termino estas notas apontando algumas iniciativas como aprendizados que quiçá possam ser replicados em outros contextos. São indicativos de processos que visam isolar a intolerância e as ondas de desprezo humano:
- Demonstrações de vínculos entre membros de uma comunidade internacional religiosa interessada na vida e na paz, que aumentam a legitimidade dos atores nacionais;
- Manifestações simbólicas conjuntas de diferentes religiões ajudam a agregar campos de atores pela afirmação dos direitos humanos – a exemplo de celebrações, de caminhadas e de manifestos. Sempre que possível incluindo evangélicos e preferencialmente pentecostais;
- Atos concretos de solidariedade in loco, como missões de observação, celebrações junto aos atingidos em seus territórios, celebrações junto às vítimas, atos públicos místicos com atores da sociedade civil;
- Criação de redes de proteção religiosa para as vítimas – a exemplo das redes de mulheres;
- Proclamações de denúncias junto ao Estado, diálogos e acompanhamento do atendimento de casos;
- Campanhas focadas em problemas concretos – a exemplo da Campanha da Fraternidade Ecumênica;
- Promoção de debates e reflexões para a formação sobre a realidade, multiplicação de ativistas pela paz. Tematicamente orientados pela história e por perspectivas teológicas que respeitem a diversidade espiritual e religiosa;
- Ativismo público nas redes sociais.
Referências
[1] Dados reunidos do Censo 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. Os dados até 2015 foram do Ministério da Mulher, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos – Disque 100 e, principalmente, do Relatório sobre Intolerância Religiosa no Brasil, feito por: Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, Movimento Inter-Religioso e Universidade Federal do Rio de Janeiro (Mimeo). Sobre as mortes indígenas, os dados são do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e sobre mortes no campo, os dados são da Comissão Pastoral da terra (CPT). Tanto o CIMI como a CPT são organismos católicos.
[2] Registro entre aspas, porque o universo chamado Evangélico é muito grande e inclui uma diversidade que aqui não cabe descrever. Desse modo, tento evitar generalizações injustas querendo ao menos apontar um campo popular, não-católico e de maioria de comportamento pentecostal, mais compatível com os registros genéricos dos dados.
[3] O racismo no Brasil tem o rosto negro e se expressa nas aversões à cor da pele, o que acaba em determinados contextos por abarcar indígenas vítimas de toda a forma de preconceito e agressão.
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Fonte: Texto de Rafael Oliveira, Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (2005). Atualmente é Diretor Executivo e associado colaborador da Koinonia Presença Ecumênica e Serviço. Publicado em Revista Coletiva, número 21, disponibilizado online.