A crise política brasileira vem sendo marcada por vários paradoxos e contrastes. Um dos mais marcantes é o fato de que, enquanto Michel Temer evita as ruas e as aparições públicas por causa dos protestos que enfrenta, Dilma Rousseff, eleita em 2014 com mais de 54 milhões de votos e afastada da presidência por um processo de impeachment comandado pelo hoje preso Eduardo Cunha (PMDB-RJ), segue reunindo multidões por onde passa. Cerca de 48 horas depois de participar de um ato, junto com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que reuniu mais de 12 mil pessoas em Rio Grande, Dilma Rousseff proferiu a aula pública do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para um público de mais de mil alunos e professores que lotaram por completo o salão de atos da UFRGS.
Dando continuidade à jornada de debates de que vem participando no Brasil e no Exterior, Dilma falou sobre o golpe que sofreu, sobre o presente e, principalmente, sobre o futuro. “O presente nós perdemos. Não podemos perder o futuro”, resumiu ao final de sua fala, apontando aquele que entende ser o principal desafio do presente:
“Temos hoje uma tarefa central que é ampliar os espaços democráticos do país. Precisamos debater com a sociedade, falando a verdade. Na ditadura, a gente tem que lutar para mentir e isso não é fácil. Na democracia, é preciso falar a verdade e nós precisamos falar a verdade sobre o golpe, seus agentes e suas reais intenções”.
Dilma Rousseff foi recepcionada pela diretora do IFCH, Claudia Wassermann, pela vice-diretora, Maria Izabel Noll, e pelo ex-reitor da UFRGS e ex-professor de Dilma, Helgio Trindade. Claudia Wassermann lembrou o compromisso do Instituto e da Universidade com a defesa da democracia e do espaço crítico e apresentou a presidenta eleita como um exemplo de caráter e de luta. “Estamos recebendo aqui a última presidenta eleita pelo voto popular. A UFRGS não poderia se eximir de recebê-la neste salão de atos”, disse Helgio Trindade. Recebida aos gritos de “Dilma guerreira, mulher brasileira”, a convidada especial proferiu a aula inaugural do IFCH que teve como tema “Os desafios da democracia no Brasil”.
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A palestrante não dourou a pílula. “O leão não é manso” foi a última frase da aula inaugural. No percurso de sua fala, Dilma Rousseff tratou de conectar as reais motivações do golpe parlamentar que sofreu, os seus protagonistas, sua agenda política e os desafios que a situação presente coloca para o futuro imediato. Como vem fazendo em suas intervenções públicas, ela enfatizou o caráter estratégico da defesa da democracia e o preço que estamos pagando hoje por escolhas feitas no período da redemocratização:
“Sempre que tivemos mais democracia nós ganhamos. Quando não temos democracia, nós perdemos. Por isso, precisamos ampliar os espaços de participação. Na passagem da ditadura para a democracia, nós tivemos uma transição por cima, que não julgou os torturadores e ocasionou graves danos com repercussões no presente. Quando o deputado Bolsonaro votou a favor do meu impeachment, ele votou também a favor da tortura e do torturador que me aterrorizou. Em um pais democrático, isso não aconteceria. Nós precisamos de um acordo por baixo no Brasil e só tem um jeito disso acontecer: eleições diretas para presidente da República”, defendeu.
Dilma advertiu para os riscos que a democracia brasileira corre no presente.
“As pessoas perderam o seu voto e agora começaram a perder seus direitos. Com isso, o governo e a política começam a se tornar irrelevantes, abrindo caminhos para aventureiros, o preconceito e a intolerância. O aumento do nível de desigualdade torna a população mais refratária à democracia. Isso está acontecendo no mundo inteiro. O que está em crise é o sistema político que sustenta essa desigualdade. Com o atual sistema político, o Brasil é ingovernável. Esse sistema é marcado por uma fragmentação partidária. Nós não temos 25 programas distintos para o Brasil, mas temos 25 partidos representados no Congresso. Com exceção de alguns poucos que tem um programa, o restante vive para negociar cargos, emendas e benesses”, resumiu.
A presidenta eleita também defendeu o direito de Lula se candidatar em 2018 e alertou para as tentativas de evitar que isso ocorra.
“Lula vem sofrendo uma sistemática tentativa de destruição que tem resultado no seu crescimento nas pesquisas. Eles ainda não têm candidato. Se não encontrarem um, tentarão evitar a realização de eleições em 2018 ou inviabilizar a candidatura Lula. Se a candidatura de Lula for inviabilizada porque ele pode ganhar a eleição, teremos algo que é antípoda da democracia˜. Ela também criticou o papel que a mídia vem desempenhando neste processo, em especial a Rede Globo de Televisão que apontou como “um dos grandes lideres do processo do golpe”.
“A mídia é um setor como qualquer outro que também é afetado pela oligopolização. Para barrar isso, precisamos de uma democratização econômica da comunicação ou, para usar uma expressão do mercado, promover a livre concorrência neste setor. Mas as empresas de mídia não gostam da livre concorrência. Também não podemos aceitar que a mídia vire tribunal, fazendo condenações sem respeitar o direito de defesa e o devido processo legal”.
Dilma Rousseff chamou a atenção também para os riscos que o Brasil corre com o desmonte da rede proteção social e com as propostas de Reforma da Previdência e Trabalhista. “Com o desmonte da rede de proteção social, o Brasil cairá na maior miséria. A proposta de Reforma Trabalhista, com uma profunda desregulamentação do mercado de trabalho e o fim da CLT representa um retrocesso inominável. É algo amoral”. Ela também criticou a medida que congela os investimentos em saúde e educação por vinte anos, definindo-a como um “crime contra o futuro do país”, e defendeu que a principal reforma que o Brasil precisa não é a da Previdência, mas sim a Tributária:
“O Brasil paga muito imposto sim, mas quem paga é a classe média e os trabalhadores. Ganhos de capital não pagam imposto no país. O Brasil, junto com a Estônia, é o único país que não tributa dividendos, porque isso, supostamente, afastaria investidores. De onde podemos concluir que o Brasil e a Estônia são os únicos países que não afastam os investidores”, ironizou. Para Dilma, o pato amarelo da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) é um símbolo dessa recusa dos mais ricos em pagar impostos. “Toda crise implica um conflito distributivo. Nós propusemos a retomada da CPMF com um índice de 0,38% sobre as transações financeiras. Eles não quiseram porque a CPMF permite indicar onde está a fraude fiscal. Por isso eles demonizaram a CPMF e a mídia conseguiu fazer com que as pessoas fossem contra os seus próprios interesses”.
Dilma falou ainda sobre a gramática misógina do golpe, que foi marcada por uma série de agressões dirigidas diretamente contra ela. Essa gramática, assinalou, opera com certas dualidades entre homens e mulheres.
“A mulher é dura, enquanto o homem é forte. A mulher é instável emocionalmente, enquanto o homem é sensível. A mulher é obsessiva e compulsiva com o trabalho, enquanto o homem é um empreendedor, e assim por diante. Essa gramática esteve presente em todo o discurso golpista”.
Mas a razão profunda do impeachment e do golpe, destacou, é a tentativa de enquadrar o Brasil no neoliberalismo, retomar e aprofundar o processo que foi interrompido com a primeira eleição de Lula. Essa tentativa de enquadramento, acrescentou, enfrenta hoje alguns dilemas e contradições. “Se o governo ilegítimo entregar o pacote das reformas para a mídia e o mercado, ele deixa de ter serventia. Se não entregar, ele perderá sua legitimidade diante desses setores”. Uma das expressões das contradições que atravessam o campo do golpismo, observou, é o crescimento da candidatura de Bolsonaro. “Acho que vamos ter um conflito entre a extrema-direita e a direita”, assinalou, lembrando os resultados da última pesquisa de intenção de voto.
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Fonte: Marco Weissheimer para o SUL21, 02/05/2017.
Foto: Guilherme Santos/Sul21