Reflexão do evangelho sobre Lucas 10,25-37, por Gilvander Luís Moreira*
O início da vida pública de Jesus foi marcado por uma grande e crescente receptividade ao seu projeto[1] pelo povo empobrecido. A princípio, ele fascinava a todos – “As multidões acorriam para Jesus” (Lc 6,17-19) -, mas, pouco a pouco, Jesus foi aprofundando sua postura, foi radicalizando sua opção pelos pequenos, marginalizados e excluídos da sociedade (Lc 4,18-19). A “lua de mel” com todos, a era de “paz e amor”, durou pouco. Começaram a surgir conflitos com poderosos (Lc 13,31), pois sua prática incomodava os interesses dos que viviam explorando o povo. Jesus descobriu que precisava formar com mais profundidade seus discípulos e discípulas, pois percebeu que a adesão popular inicial era “fogo de palha”. Os conflitos com os poderosos da economia, da política e da religião aumentavam cada vez mais. Em seus últimos dias, os embates[2] de Jesus com as autoridades judaicas e grupos religiosos e políticos de renome se intensificaram.
Por razões históricas, reinava entre judeus e samaritanos um grande ódio. Alguns motivos aparecem nas escrituras. Os samaritanos fizeram resistência à reconstrução do templo de Jerusalém, após o retorno do exílio babilônico (cf. 2Rs 17,24-41 e Esd 4,1-5). Em Eclo 50,25-26 os samaritanos são considerados “um povo estúpido”.[3] Uma interpretação rabínica de Ex 21,14 diz expressamente que os samaritanos não são “próximos”.
Do lado judeu, a hostilidade era tão grande que, nas sinagogas, os samaritanos eram frequentemente malditos; os judeus rezavam a Deus para não dar a eles nenhuma parte na vida eterna, recusavam um testemunho feito por um samaritano, não aceitavam nenhum serviço deles.[4] As relações entre os judeus e os mestiços samaritanos, que estiveram submetidas às mais diversas oscilações, tinham experimentado, nos tempos de Jesus, especial agravamento, depois que os samaritanos, entre 6 e 9 E.C., durante uma festa da Páscoa, por volta da meia-noite, tornaram a praça do templo impura, esparramando aí ossadas humanas; reinava, de ambas as partes, ódio irreconciliável. Vêse, então, claramente que Jesus escolhe exemplos extremos.[5]
Afirma o historiador do século I, Flávio Josefo: “Samaritanos armaram emboscadas para peregrinos que vinham às festas judaicas e o procurador Cumanus, subornado pelos samaritanos, não interveio. Assim, judeus atacaram vilas samaritanas e massacraram seus habitantes.”[6] Muitos acontecimentos contribuíram para piorar as relações entre samaritanos e judeus, como a construção de um templo samaritano sobre o Monte Garizim no século IV a.E.C., e que foi destruído pelos judeus sob o reinado de João Hircano, em 128 a.E.C. O monte Garizim é mais alto (881m), muito mais imponente do que o monte Sião (818m), onde foi construído o templo de Jerusalém. A própria questão geográfica pode ter gerado ciúmes e críticas de ambas as partes.
Também azedou as relações entre samaritanos e judeus a finalização do Pentateuco samaritano na segunda metade do século II a.E.C. O texto sagrado samaritano é o Pentateuco, os cinco primeiros livros, com algumas diferenças em relação ao Pentateuco judaico-cristão. Por exemplo, a versão samaritana de Dt 27,4 cita o monte Garizim, enquanto a versão judaica de Dt 27,4 faz referência ao monte Ebal. Os samaritanos não reconhecem os demais livros da Escritura judaica como textos sagrados.
Esse “ódio irreconciliável” entre judeus e samaritanos foi cultivado ao longo de quase mil anos de história. É possível que se tenha iniciado com a separação dos Reinos do Norte e do Sul, em 931 a.E.C., quando Roboão ficou como rei em Judá, no Sul, e Jeroboão se impôs como rei em Israel, o reino do Norte. Essa separação foi forçada e violenta, e certamente deixou muitas feridas (cf. 1Rs 11,26-12,33). Em 722 a.E.C., o povo do Reino do Norte foi exilado para a Assíria. É provável que os “sulistas” tenham cantado vitória dizendo: “Foram exilados porque eram infiéis à Aliança e idólatras”. A Assíria “repovoou” o Norte com pessoas das mais diversas raças e etnias (2Rs 17). No coração dos samaritanos do Norte pode ter ficado um ressentimento. A vez dos “sulistas” chegou entre 597 e 587 a.E.C., quando, após várias deportações, foram também exilados para a Babilônia. Os judeus do Sul sentiram na pele aquilo que haviam passado os “irmãos” do Norte. Depois vieram as diversas tentativas de retorno para a terra da promessa. A volta do exílio e o processo de reconstrução foram muito complicados, pois havia resistência tanto de judeus como de samaritanos quanto à fixação novamente na terra. É com base nessa história que se entendem os diversos atritos e agressões que se sucederam.
Nos tempos de Herodes, houve um grande crescimento econômico à custa de um alto preço social. Muitas terras de judeus foram expropriadas no Norte, o que gerou uma massa de desempregados urbanos no Sul, com consequentes distúrbios sociais inseridos em um contexto propício para a disseminação da insegurança social.
É nesse contexto de injustiça social, de opressão econômica, política e religiosa que a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) ganha eloquência e precisa ser entendida. Na narrativa do Bom Samaritano, vemos a compaixão-misericórdia como um princípio básico para o seguimento de Jesus Cristo e do seu Evangelho, projeto de vida para todos a partir dos oprimidos.
Referências:
[1] O projeto de Jesus compreende suas ações e ensinamentos como um todo interdependente que se ilumina mutuamente.
[2] Como, por exemplo: Lc 19,45-46; 20,9-26; 21,1-4; 22,2.52; todo o capítulo 23 de Lc.
[3] Talvez Eclo 50,25-26 tenha influenciado Jo 4,9, onde diz que os samaritanos não se davam bem com os judeus, e Jo 8,48, que os judeus acusam Jesus de ser samaritano e, portanto, impuro.
[4] Feuillet, A. “Le bon Samaritain (Luc 10,25-37). Sa signification christologique et l’universalisme de Jésus”, Esp Vie 90, 1980, p. 345.
[5] Jeremias, J. As parábolas de Jesus. São Paulo, Paulus, 1976. p. 203.
[6] Josefo, F., Seleções de Flávio Josefo, Antiguidade judaica, Vol III, Ed. Acervo cultural,1961.
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