A telenovela “Babilônia" tem causado frisson em uma parcela do segmento evangélico, em especial a conhecida Frente Parlamentar Evangélica. O estopim foi um beijo de amor entre um casal de mulheres idosas. Os políticos evangélicos, com o apoio público de outras lideranças religiosas, divulgaram uma nota de repúdio, com a afirmação de que o folhetim tem a “clara intenção de afrontar os cristãos”. Asseveram ainda que o beijo é uma forma de “disseminar a ideologia de gênero” e atacar a “família natural”, e um boicote à telenovela foi convocado.
Nas últimas semanas, o incômodo dos religiosos com “Babilônia” foi acirrado por conta de cenas em que personagens moralistas expressam aversão pelo relacionamento do casal de mulheres. Os parlamentares se disseram revoltados com a “representação estereotipada de quem é contra o casamento gay” e um reforço ao boicote foi propagado.
Não convém discutir aqui o engano de se atribuir ao boicote os baixos índices de audiência. Os motivos são outros. Interessa refletir significados do repúdio de lideranças evangélicas à telenovela.
A nota dos parlamentares foi publicada em momento delicado da política. Tempo em que pautas com temáticas sociais controversas vêm sendo colocadas no Congresso. Há o tema da segurança pública, com o sinal verde para a discussão da redução da maioridade penal. Também, a aprovação de que empresas terceirizem suas atividades-fim, mudando radicalmente as relações de trabalho. A maioria dos deputados evangélicos é protagonista no apoio a estes temas, que são claros retrocessos de conquistas sociais históricas como a Consolidação das Leis do Trabalho e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Há um elemento simbólico presente neste processo, em torno do termo “Babilônia”. Não foi à toa que os autores da história o escolheram para expressar uma trama que envolve uma mulher batalhadora que mora na favela e duas vilãs ambiciosas. Tudo entremeado com práticas de assassinato, roubo, empobrecimento, falsidade. Babilônia, de fato, foi um império antigo destacado na história por seu poder, riqueza, domínio e influência, em especial no período do rei Nabucodonosor, seis séculos antes de Cristo. É conhecida também pelo código escrito por um de seus reis, Hamurabi, um conjunto de leis duras, baseadas no “olho por olho, dente por dente”.
A Babilônia se fez por meio da conquista e destruição de muitas nações, entre elas o Reino de Judá. Segundo a Bíblia cristã, Judá foi cruelmente destruído pelos babilônios e teve parte dos sobreviventes levada em exílio. A história da Torre de Babel é uma denúncia do domínio que esse povo representava. Décadas depois de Cristo, os cristãos chamaram de Babilônia o Império Romano que oprimia e explorava os povos da Palestina. Estudiosos da Bíblia desafiam a pensar a quem chamar de Babilônia no presente. Não é difícil, dado o poder de nações que hoje dominam e exploram outras. Mas não só…
Não é visível que a Frente Parlamentar Evangélica e seus aliados não tenham se manifestado sobre os assassinatos, roubos, falsidades, expressos na trama? Não é notório que não se incomodam, e até promovem, a eleição de adolescentes como bodes expiatórios para a insegurança pública? Ou com a redução do pleno direito de trabalhadores com as modernas formas de exploração? Que silenciam sobre as lutas dos movimentos sociais pela Justiça e a violência oficial que eles sofrem? O que causa revolta a tais religiosos e os move à ação pública é a encenação de um beijo gay e a dramatização de atitudes homofóbicas. Sobre os verdadeiros riscos que rondam as famílias no âmbito do trabalho, da cidadania e da economia nenhuma palavra. Indiferença e indolência. É… a Babilônia é aqui.
Texto: Magali Cunha