1. Introdução
A atuação de João Batista, de que fala o texto em pauta, tinha dado origem a esperanças messiânicas. Formara-se uma comunidade de seguidores, do que é testemunha o historiador Josefo, bem como um texto como o de Atos 19. l s. Seria ele, João, o Messias esperado, com cuja vinda seria inaugurado o reino de Deus? A pregação destemida, o batismo de arrependimento, o estilo profético desse homem, tudo parecia credenciá-lo como salvador do povo, sábio religioso, liderança carismática. Não havia o próprio Jesus se submetido ao batismo de João? Como se relacionam os dois personagens? É a questão em foco no trecho previsto para a prédica neste 3° Domingo do Advento. Quem é João Batista?
O evangelista João responde à sua maneira. Pelo que tudo indica, é conhecedor da tradição sinótica. Mas, como costuma fazer, funde a tradição com os seus propósitos teológicos específicos. Para o quarto evangelista, o Batista é por excelência testemunha. É este o enfoque absolutamente predominante, fazendo com que certos aspectos dos textos paralelos nos evangelhos sinóticos sejam ignorados. Falta a menção do juízo iminente na prédica de João, falta a referência a seu modo de vestir e alimentar-se, faltam outros detalhes. Temos neste trecho um belo exemplo de concentração joânica numa questão fundamental para a cristandade, ou seja: quem é de fato salvador?
2. Observações exegéticas
O trecho proposto é uma composição de partes distintas. Os vv. 6-8 representam uma inclusão, tanto formal quanto temática, no prólogo do quarto evangelho, que abrange os vv. 1-18. O bloco dos vv. 19-28 dá continuidade a estes versículos. Aliás, ao todo deveria ser acrescentado ainda o v. 15. Insere-se organicamente na temática geral. Apesar da localização diversa, as partes formam unia unidade:
* Vv. 6-8: João veio para dar testemunho da luz. Tem a tarefa de despertar fé. Mas ele mesmo não é a luz.
* V. 15: O testemunho de João tem por conteúdo o Verbo feito carne, em comparação com o qual ele, João, é absolutamente inferior.
* Vv. 19-28: João está sendo submetido a uma sabatina referente à sua identidade, e isto, por assim dizer, em duas etapas:
* Vv. 6-8: João veio para dar testemunho da luz. Tem a tarefa de despertar fé. Mas ele mesmo não é a luz.
* V. 15: O testemunho de João tem por conteúdo o Verbo feito carne, em comparação com o qual ele, João, é absolutamente inferior.
* Vv. 19-28: João está sendo submetido a uma sabatina referente à sua identidade, e isto, por assim dizer, em duas etapas:
1. Vv. 19-23: Delegados dos sacerdotes e levitas de Jerusalém interrogam João quanto ao título por ele pretendido. A pergunta chave é: Quem és tu? (v. 19).
2. Vv. 24-28: Esses mesmos delegados — agora especificados como vindos da parte dos fariseus — interrogam João quanto à sua prática batismal. A pergunta chave é: Por que batizas? (v. 24).
Em todas estas partes o assunto é o mesmo, embora seja apresentado em diversas variantes: João não é o Cristo, respectivamente ele não é a luz. Isto é dito sobre ele (vv. 6-8) e por ele (vv. 15; 19-28). Depoimento semelhante teremos no bloco seguinte que compreende os vv. 29-34. João é a primeira pessoa a identificar Jesus como portador do Espírito Santo e Filho de Deus (vv. 33,34), bem como a conduzir discípulos a ele. Seu testemunho se resume nas palavras: Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (v. 29).
O interrogatório de João, narrado nos vv. 19-28, teria acontecido em Betânia, na outra banda do Jordão. A indicação do lugar parece atestar a historicidade do episódio. A pesquisa, porém, desconhece uma localidade com esse nome naquela região. Mesmo assim, não há razões para duvidar do fundamento histórico do texto. A questão messiânica quase que forçosamente se colocava a um vulto tão notável como João. Ele rejeitou não somente o título Cristo (v. 20), como também outra dignidade análoga, a exemplo de Elias ou do profeta escatológico (v. 21), que, segundo opinião corrente, seriam precursores do reino de Deus. A função de João se resume a ser voz que clama no deserto e chamado para endireitar o caminho do Senhor (v. 23). Significado semelhante tem o seu batismo: aponta para aquele do qual João não é digno de desatar a correia das sandálias (v. 27). Pelo que sabemos de outros textos, João de fato recusou dignidade messiânica (cf. Mt 11.2s.; etc.). Justamente por isto ocupa espaço tão importante na história da salvação. Vejamos algumas das implicações teológicas do texto.
3. Reflexões teológicas
Para o quarto evangelista a figura de João é interessante não só, nem em primeiro lugar, sob a perspectiva histórica. Ela o é, antes, em sentido querigmático: João é protótipo, exemplo, prefiguração da autêntica testemunha de Jesus. Considerando que o ser testemunha faz parte da vocação apostólica da Igreja e de todos os seus membros (cf. At 1.8; l Jo 1.1; etc.), João Batista se torna, neste sentido específico, modelo de existência cristã. Isto significa:
1. A testemunha não salva. Imporia resistir às tentações messiânicas que afetam particularmente as pessoas de sucesso religioso. Quem conseguiu constituir uma comunidade de fiéis sabe do perigo. Consiste em atribuir a si próprio a obra do Espírito Santo, colocar-se no lugar de Deus, considerar-se dono do saciado. Ora, a testemunha não é o Cristo! A rejeição de qualquer titulação respectiva por João é, por um lado, demonstração da devida modéstia. Deus resiste aos soberbos. Portanto, cuidado com pretensões descabidas. E, no entanto, não é somente humildade que se expressa na atitude de João. Ela documenta, acima de tudo, verdade: pode o ser humano salvar? Tal pretensão se desmascara como ilusão o mais tardar frente à morte. Ninguém pode substituir o Deus salvador que, em Cristo, se fez carne. Cristãos não salvam ninguém. Quem conta o número de almas que salvou, está blasfemando o nome do Senhor.
2. A testemunha, isto sim, encaminha as pessoas à salvação. Sabe onde consegui-la. Tem um endereço. Aponta para a luz, assim como a lua aponta para o sol. A humildade de João, que rejeita as glórias messiânicas, de modo algum significa autonegação. Também a lua brilha. Mas ela reflete a luz que recebeu. Está desonerada de produzir luz própria. Assim o ser humano está dispensado de produzir o divino por forças próprias. Como testemunhas podemos permanecer humanos. Isto não legitima o pecado, mas confere a liberdade para admiti-lo e para buscar perdão. Não temos necessidade de aparentar o que não somos. Temos dignidade, não obstante. Ela resulta do amor de Deus que vem resgatar sua criatura (cf. Jo 3.16).
3. Testemunho se dá por palavra e ação, melhor: por uma maneira de ser. A pregação de João, seu batismo, sua vida no deserto, tudo conflui em seu testemunho. Embora sejam escassas as informações que o quarto evangelho fornece sobre o modo de ser e viver de João, há que se considerar este horizonte. De qualquer maneira, seria errôneo restringir o testemunho a uma questão meramente verbal. O texto colateral de l Ts 5.16-24, contendo parênese, lembra dessa verdade. O testemunho inclui a vivência. O que se exige não é a perfeição. Esta não escapa do perigo de ser hipócrita. Importante mesmo é deixar claro o quanto a própria testemunha vive da fonte à qual remete as pessoas.
4. A salvação é obra de Deus, não das testemunhas. Não será esta uma posição por demais cômoda? Poderia desresponsabilizar a Igreja e a comunidade pelo mal que há no mundo. É forte o clamor na América Latina por construtores do reino de Deus, ou seja, por pessoas que se engajem em favor da paz e da justiça, motivadas pelo amor aos fracos e explorados. Ora, o texto não dispensa as testemunhas de sua responsabilidade social. Seria um grosseiro mal-entendido. Verdade é que não se deve confundir o reino de Deus com um projeto humano. Nisto o texto é categórico. Quem tentar implantar o divino neste mundo frustrar-se-á. Vai até mesmo tornar-se cruel e desumano. O ser humano não pode construir o reino de Deus nem salvar o mundo. Mesmo assim, não é pouco o que dele se espera. Resume-se naquele endireitar o caminho do qual fala o v. 23.
Também neste tocante João Batista coloca os padrões: ele chama o mundo ao arrependimento, à preparação da chegada do Reino, a uma radical faxina na casa particular e pública. Vamos colocar este nosso mundo em ordem para que o juízo de Deus não nos pegue de surpresa. É esta a tarefa social da testemunha. E vejamos lá, temos muita coisa a fazer aí.
5. João indica Jesus Cristo como fonte da salvação. No texto em apreço ainda não se lhe menciona o nome. Somente a partir do v. 29 a referência será explícita. Mas não há dúvida: aquele que vem após João, embora fosse anterior a ele (vv. 15,27), é Jesus de Nazaré. Por que ele? João vai dizer: Vinde e vede! (V. 39.) Ouçam o que tem a dizer. Observem seus gestos! Acompanhem sua trajetória biográfica. E vocês concordarão comigo, quando digo: Eis o cordeiro de Deus… (v. 29). Nele, em Jesus, o Verbo de Deus se faz ouvir, a luz do mundo vem brilhar, o amor de Deus vem socorrer. Em termos do texto de Isaías 61, previsto como leitura paralela, poderíamos dizer: sobre Jesus está o Espírito do Senhor. Assim o próprio Jesus entendeu sua missão, e a comunidade cristã o confirma. Mas João Batista antecede a todos. E o primeiro a celebrar o Advento de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. Ele antecipa o testemunho da comunidade. Reside nisto sua singular importância.
4. Pistas para a predica
Observação preliminar: Ainda que o v. 15 faça parte do bloco temático acerca de João Batista, não há nenhum imperativo que obrigasse a incluí-lo no texto da prédica. Seu conteúdo está contemplado pelo v. 27. Os textos laterais de Isaías e de l Tessalonicenses acrescentam importantes dimensões ao texto, como visto acima. Oferecem-se, portanto, como referências explicativas à prédica, conforme a necessidade.
1. Os evangelhos informam que Jesus sofreu tentação. Para João Batista vale a mesma coisa. Esta aqui é a história de sua tentação. Assim poderia iniciar a prédica. A tentação consiste em João se autopromover e se condecorar com um título honroso. Ele tem tudo para ser um Messias. Tem sucesso, uma comunidade que o aplaude, chama a atenção, inclusive das autoridades. João é uma celebridade, incômoda, é verdade, mas notável. Não obstante, ele rejeita os títulos e se contenta com o papel de uma voz que clama no deserto. Como testemunha da luz é refletor, só isto.
2. A tentação de João é também a nossa. Lutero diagnosticou bem ao dizer que todos gostaríamos de ser um pequeno Cristo por nós mesmos. Nada melhor do que a sensação de que nós salvamos outra gente. Nosso mundo está cheio de tais salvadores da pátria, de gurus, donos da verdade, médiuns, de supostas encarnações de divindades, de pessoas que se consideram um canal especial do Espírito Santo, gente que está acima do nível dos demais. Claro, poucos têm o atrevimento de se auto-intitular de Cristo. Mas muitos se comportam como se o fossem. No mercado religioso a procura excede a oferta. Eis aí a chance para os gênios religiosos, os cristos autopromovidos, os vendedores e cambistas do sagrado. Religião é um grande negócio. Feliz quem sabe explorá-lo. Está aí a fonte de muito dinheiro, ou pelo menos de gostosos aplausos.
3. João Batista parece ingênuo. Ele não aproveita a chance. Não quer honras para si. Coloca-se inteiramente a serviço daquele que vem após ele. Dele é testemunha e nada mais. Mas o que parece ser ingenuidade é na verdade sabedoria. Salvação não se compra. Não é produto humano. E quem como tal a vende, adulterou a mercadoria. A salvação tem Deus por origem. Qualquer tipo de apropriação humana fracassa. Importa saber distinguir entre a fonte, o reflexo e o plágio. Querer ser fonte de luz é arrogância humana. O plágio é crime, abominável sedução, charlatanice. Ser espelho, reflexo — é isto o que corresponde à vocação cristã.
4. Significa isto que toda ajuda humana seja vã e inútil? Nada mais errado do que isto. A testemunha deve educar — assim o fez Jesus. A testemunha deve curar — seguindo o exemplo do mestre. A testemunha deve acusar o pecado — assim como o fez o próprio João Batista, pelo que, aliás, sofreu o martírio (cf. Mc 6.14-29). A ação humana, motivada pelo amor, é fundamental para o bem-estar, a paz, a justiça na sociedade. Mas esta ação não pode criar o perfeito. Não pode produzir sentido nem de fato superar o mal. Só Deus pode iluminar as trevas, só ele perdoar pecados, só ele ressuscitar mortos. O amor das pessoas é essencial, indispensável, de extremo valor. Mas não cria o reino de Deus. Quando autêntico, será reflexo do amor de Deus, remetendo para ele. Os pais devem amar seus filhos, e simultaneamente dizer que só Deus é capaz de amá-los assim como importa que sejam amados. Existe um espaço na vida, nos indivíduos e na sociedade que somente Deus pode preencher. Nós podemos e devemos preparar o caminho do Senhor. Mas forçar a sua vinda, isto ultrapassa a capacidade humana.
5. O Advento diz que Deus veio, vem e virá. Existe luz neste mundo, sim. Nem tudo é escuridão, vaidade, absurdez. Não dependemos de nosso esforço e dos fracos efeitos positivos que produz. Há por demais gente que não mais acredita em salvação, ou que a busca em substitutivos dúbios e em pessoas que, à dessemelhança de João, não se inibem de preconizar-se a si próprios como Cristos. Função da comunidade cristã é testemunhar o amor de Deus que está em Cristo Jesus. Fica a pergunta: como cumprir devidamente essa nobre tarefa? O exemplo de João Batista fornece valiosa, sim, imprescindível inspiração.
É claro que a prédica pode seguir outra estrutura e usar outros elementos. O que apresentamos não passa de sugestão.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão dos pecados: Senhor, estamos aí para confessar nossas dívidas perante ti e nossos semelhantes. Temos sido falhos no testemunho da fé. Nossos olhos estavam por demais fechados para os sinais de tua graça, nossos ouvidos por demais surdos para a tua voz, nosso egoísmo tem atrofiado o amor a nossos semelhantes. Nossa casa não está suficientemente preparada para te acolher. Queiras perdoar-nos a negligência e dar-nos nova chance. Não adies teu Advento por causa de nosso despreparo. Tem compaixão de nós, Senhor!
Oração de coleta: Senhor, por demais vezes o mundo ao nosso redor nos inspira medo. É a violência, são as incertezas, as perspectivas sombrias quanto ao futuro que nos angustiam. Às vezes somos atingidos por golpes, frustrações, contratempos. De uma ou de outra forma todos fazemos a experiência do mal, da ameaça, das trevas. O teu Advento vem trazer luz a esta realidade. Tu nos mostras o caminho, reacendes a chama da esperança, dás novas energias. Nós te agradecemos por tua vinda. Vens para socorrer-nos e refazer a nossa vida. Mesmo que a nossa casa seja um tanto desarrumada, sê bem-vindo, Senhor. Vem e toma morada em nós. Amém.
Intercessão: Senhor! Tu nos reservaste a missão de sermos tuas testemunhas. Dá-nos coragem para cumprir este mandato. Por que falamos tão pouco da nossa fé? Às vezes temos até vergonha de confessar que somos cristãos. Nós te rogamos pela IECLB, por nossas comunidades, por todos os seus membros e por todas as igrejas cristãs. Dá-lhes o espírito missionário que estava em Jesus e que despertou fé nas pessoas. Dá que testemunhemos teu amor pela ação diaconal. transmitindo a outros, principalmente aos necessitados, o amor que de ti temos recebido. Dá-nos olhos capazes de perceber miséria e angústia, ouvidos atentos para ouvir gritos de socorro, mãos ativas para mobilizar ajuda. Tu vens como luz a este mundo. Rogamos-te que multipliques esta luz através das tuas testemunhas. Faze recuar as trevas que se manifestam em ódio, destruição, cinismo, crime. Senhor, livra-nos do mal. Dá às pessoas uma razão lúcida, voltada para o bem-estar, a paz e a justiça. Pedimos isto especialmente para quem exerce liderança em nosso país e em suas instituições. Assiste quem está abatido, doente, desesperado. Cura as nossas enfermidades. Senhor. Atende as nossas preces que formulamos assim como teu Filho no-las ensinou:
Pai nosso…
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