Me perguntam pela Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas: posso contar dos muitos encontros, as conversas e comidas partilhadas, os cantos e preces, algumas promessas e muitos desafios. Tanta coisa ao mesmo tempo. Mas entre o que o tempo e a historia pedem de nos e o que somos como movimento ecumenico existem portas, processos, encaminhamentos, protocolos… burocracia demais para missão de menos! melhor contar uma historia!
O conto de José Saramago – A Ilha Desconhecida – me intriga de tantos modos que vai se modificando a cada leitura. Quando um texto volta assim muitas vezes é porque a leitura fica pedindo interpretação, inquieta, desassossegada: tudo é bíblias! Pra quem não conhece o texto: (www.releituras.com/jsaramago_conto.asp ).
As portas me intrigam: a das petições, a dos obséquios e a porta das decisões. Na dos obséquios um rei e sua estrutura de troca de favores. Na das petições, um homem com um desejo e um pedido: ir em busca da ilha que não existe e, para tanto, precisa de um barco.
A insistência e a perseverança do homem-que-deseja desloca a narrativa para a porta dos fundos do Palácio. A ação do homem acorda os desejos das outra pessoas, os olhares e as atenções se concentram na ação determinada do homem-com-um desejo.
Organizado assim pelo desejo e a necessidade de um instrumento para alcançar seu desejo – a ilha desconhecida! – o homem move a estrutura do poder no Palácio, e faz com que o fluxo das informações e das atenções se desloquem para a porta dos fundos. O rei eh obrigado a se mexer: sai da porta dos obséquios e vem até a porta dos pedidos ouvir o homem-que-deseja.
E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível comodidade, na cadeira da mulher da limpeza, Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para que não mo dês, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar, Às minhas ordens, com os meus pilotos e os meus marinheiros, Não te peço marinheiros nem piloto, só te peço um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares, será para mim, A ti, rei, só te interessam as ilhas conhecidas, Também me interessam as desconhecidas quando deixam de o ser, Talvez esta não se deixe conhecer, Então não te dou o barco, Darás.
O homem-que-deseja recebe o apoio do povo que acompanha a novidade do diálogo.
Perante uma tão iniludível manifestação da vontade popular e preocupado com o que, neste meio tempo, já haveria perdido na porta dos obséquios, o rei levantou a mão direita a impor silêncio e disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu…
O homem-que-deseja vai ao encontro de seu barco. Mas o que ele-deseja-mesmo não é o barco… o desejo é pela ilha desconhecida. Neste movimento a porta das decisões se abre e a mulher da limpeza do Palácio, abandona vassouras e seu lugar subalterno e vai com o homem, ela também uma mulher-que-deseja.
As dificuldades vão ser muitas e todas: o barco é ruim, precisa de reparos, está sujo e sem os instrumentos necessários. Não aparece a tripulação necessária e as dificuldades se transformam num pesadelo ruim que mistura o desejo com o fracasso da viagem, que confunde por instante o barco com a ilha, que experimenta motins e traições de marinheiros-piratas que nunca desejaram ilha alguma. Só o barco.
O homem do leme pergunta aos marinheiros que descansam na coberta se avistam alguma ilha desabitada, e eles respondem que não vêem nem de umas nem das outras, mas que estão a pensar em desembarcar na primeira terra povoada que lhes apareça, desde que haja lá um porto onde fundear, uma taberna onde beber e uma cama onde folgar, que aqui não se pode, com toda esta gente junta. E a ilha desconhecida, perguntou o homem do leme, A ilha desconhecida é coisa que não existe, não passa duma ideia da tua cabeça, os geógrafos do rei foram ver nos mapas e declararam que ilhas por conhecer é coisa que se acabou desde há muito tempo, Devíeis ter ficado na cidade, em lugar de vir atrapalhar-me a navegação, Andávamos à procura de um sítio melhor para viver e resolvemos aproveitar a tua viagem, Não sois marinheiros, Nunca o fomos, Sozinho, não serei capaz de governar o barco, Pensasses nisso antes de ir pedi-lo ao rei, o mar não ensina a navegar. Então o homem do leme viu uma terra ao longe e quis passar adiante, fazer de conta que ela era a miragem de uma outra terra, uma imagem que tivesse vindo do outro lado do mundo pelo espaço, mas os homens que nunca haviam sido marinheiros protestaram, disseram que ali mesmo é que queriam desembarcar, Esta é uma ilha do mapa, gritaram, matar-te-emos se não nos levares lá.
O mar não ensina a governar. Na verdade a governança do mar deveria ser aprendizagem coletiva daqueles e daquela com-um-desejo por uma outra ilha possível. Os marinheiros embarcados queriam se dar bem e não buscar o que ainda não é, reinventar a geografia, refazer o mapa. A falta de realismo do homem-que –pilota o barco cria o motim e o desgoverno. Ameaçado de morte, ele deixa o barco aportar numa ilha conhecida.
Na mistura entre o sonho e o pesadelo, o homem-que-deseja acorda abraçado à mulher-que-decidiu:
Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.
Fico por aqui com a leitura. Eu quero também acordar abraçada a um homem-que-deseja. A porta da decisão que eu abri era aquela que exigia de mim apropriar-me de um barco, transforma-lo em instrumento de realização do desejo que moveu o poder da porta dos obséquios para a porta dos desejos.
Assim o CMI é um barco: fruto do desejo, bonito! Mas se a marinheirada passa a gostar mais do barco do que de velejar… gostar mais da terra firme do que da procura, o barco vira a coisa-em-si e jah naum saimos mais do lugar.
Entre o carisma e o poder muitas portas.
Que portas temos diante de nós?
Que porta queremos abrir?
aventureiros ou mercenarios?
Que barco? Que ilha?
o ja conhecido ou o que ainda naum eh?
A missão… (continua)