Espiritualidades

PENTECOSTES: Como minha avó a soprar brasas – Edmilson Schinelo

PENTECOSTES: Como minha avó a soprar brasas - Edmilson Schinelo
O que o grupo seguidor de Jesus estava celebrando?
Pentecostes, em Israel, era a festa que marcava o final da colheita dos cereais. Era uma festa agrária, na qual se louvava a Deus pelos primeiros frutos da terra em cada ano. O povo judeu a chamava e ainda a chama de Shavuot, Festa das Semanas, por ser celebrada no primeiro dia, depois de transcorridas sete semanas desde a Páscoa. Por isso o nome grego Pentecostes – qüinquagésimo dia (Dt 16,9-10). Mais tarde, as comunidades judaicas associaram a festa agrária com uma data também histórica, recordando, nesse dia, a entrega das tábuas do Decálogo no Monte Sinai (Ex 19-20).
Como o texto de At 2 foi escrito pelo menos 50 anos depois, já houve tempo para que as comunidades e o redator final elaborassem uma narrativa muito mais cheia de sentido simbólico, que nos ajuda ainda hoje em nossa leitura e em nossa caminhada de fé.  Anunciando a chegada do Espírito Santo na festa da antiga lei, estão a nos dizer que a nova aliança é agora selada com o próprio sopro divino.

Sobre quem pousa o Espírito Santo?

Há várias maneiras de se ler o texto de At 2. Bastante comum entre nós é um tipo de leitura que quase dispensa o próprio texto bíblico. Trata-se da leitura feita a partir dos quadros artísticos, nos quais vemos línguas de fogo pousando sobre o grupo dos Doze, quase sempre tendo Maria ao centro, fechados em uma sala bastante luxuosa. Por mais que respeitemos essa leitura, é importante que digamos que a mesma não corresponde à narrativa bíblica: "tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar (At 2,1).

"Todos quem?", devemos nos perguntar. Pouco antes, podemos ler que "o número das pessoas reunidas era de mais ou menos cento e vinte" (At 1,15). Tendo em vista que não houve nenhuma indicação de mudança de grupo, é evidente que o "todos" do texto imediatamente seguinte refere-se a esse grupo de cento e vinte pessoas. Ou seja, o Espírito Santo é derramado sobre todas as pessoas da Igreja nascente (o número é rico em simbologia) e não apenas sobre algumas de suas lideranças. Não é por acaso que o relato evoca as palavras do profeta Joel: "Derramarei o meu espírito sobre todas as pessoas (literalmente: sobre toda carne), vossos filhos e vossas filhas profetizarão" (Jl 3,1; At 2,17). Esta lembrança é de importância fundamental, pois significa a reafirmação de um princípio óbvio de nossa fé: ninguém pode se apossar do Espírito Santo.

Um espírito que se manifesta na casa e não no templo!

Outro aspecto a ser observado tem a ver com o local da manifestação do Espírito divino. O texto inicia dizendo que "estavam todos reunidos no mesmo lugar". Que lugar seria esse? O texto grego fala de "mesmo lugar". Traduções mais antigas gostavam de usar a palavra "cenáculo", que  literalmente significa "o lugar onde a gente janta", faz a ceia – a cena. Traduziam assim provavelmente por dedução a partir do último lugar especificamente citado: a "sala superior" para onde o grupo havia voltado e onde costumava ficar (At 1,13). Logo em seguida, entretanto, fala-se da reunião dos "quase cento e vinte irmãos", na qual se procede à escolha de Matias no lugar de Judas Iscariotes (At 1,15-26). E do ruído, que, como o agitar do vento, enche toda a casa onde se encontravam (At 2,2).

Muita gente quis interpretar que se tratava de um lugar muito grande para reunir tanta gente. O mais importante, porém, não é discutir o tamanho do lugar, visto que a cultura judaica chama de casa o espaço do clã (como em culturas africanas e indígenas, a casa verdadeira é a sombra das árvores, o quintal, onde a vida acontece). O que precisamos considerar é que, por mais que o Livro dos Atos valorize o templo (cf. At 2,46), é no espaço da casa que o Espírito se manifesta. A casa é o espaço aberto, enquanto o templo se fechava às mulheres, aos estrangeiros, aos "impuros". A casa é o lugar da acolhida e, ao mesmo tempo, da partilha: o lugar da ceia comum (Lc 24,13-35). Assim como o pão se reparte, também o Espírito se reparte a todas as pessoas da casa. E se no templo, apenas os homens querem ter poder, na casa, é comum que este poder se exerça de forma também mais partilhada. Como podemos ler, ali "todos eles se reuniam sempre em oração, com as mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e os irmãos dele" (At 1,14).

Como minha avó a soprar as brasas

Muitas imagens são evocadas no texto, a maioria delas buscada no Primeiro Testamento. Além da casa e do número 12 X 10, é expressiva a imagem do vento, das línguas e do fogo.

O vento lembra o sopro de Deus que abriu o Mar (Ex 14,21). As línguas lembram Babel (Gn 11,1-9), onde Deus também prefere a diversidade das línguas. Também agora, cada pessoa ouve as maravilhas de Deus na sua própria língua (At 2,11). O fogo lembra a sarça ardente (Ex 3,1-10), lembra a coluna de nuvem (Ex 13,21). E toda a cena lembra especialmente a conclusão da Aliança no Sinai (Ex 19,16-19).

Mas o vento e o fogo também lembram minha avó, enchendo suas simpáticas bochechas para acender fogo na fornalha ou no fogão de lenha, tarefa que exigia cuidado e, ao mesmo, tempo expressa exercício de poder. Essa é a imagem que faço de Pentecostes: a divindade, com suas grandes bochechas, a soprar em nossas brasas, quando querem se apagar. Às vezes, uma brisa leve (a Ruah divina) é suficiente para que nossas brasas se acendam. Outras vezes, faz-se necessário um sopro bem mais forte, ventania até, para que sejamos sacudidas e sacudidos em nossa inércia!

Que neste Pentecostes, possam as bochechas divinas nos despertar de nossa acomodação, especialmente aquela que nos deixa inertes em nossos templos, em nossos cultos e nossas missas! Que possamos louvar o Espírito lá onde ele se manifestou primeiro, no cotidiano das pessoas, em suas próprias casas. Mas especialmente na vida das pessoas empobrecidas cujo espaço muitas vezes nem mesmo podemos chamar de casas. Pois é para isso que o mesmo Espírito de Pentecostes nos conclama: "O  Espírito do Senhor está sobre mim, ele me ungiu para levar uma notícia alegre aos pobres" (Is 61,1; Lc 4,18).

Edmilson Schinelo ([email protected])

 

 

 

O autor é organziador do livro Bíblia e Negritude – Pistas para uma leitura afro-descendente e colaborador em outras publicações.

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