1. Movimentos e aproximações
O capítulo 4 do Evangelho de João narra uma discussão teológica entre Jesus e a mulher samaritana a partir de elementos que constituem necessidades do cotidiano: pão, fome, água, sede, carência, relação. Com um olhar que se movimenta em várias direções, tomamos o texto como memória de ações e protagonismos de mulheres, como proposta comunitária que direciona a ação missionária para fora dos limites geográficos e como estrutura narrativa que combina forma e conteúdo, ajudando a explicitar os processos de construção e produção textual.
Nesta análise, um dos instrumentais úteis será a construção social dos gêneros masculino e feminino. Este instrumental trata da construção a partir de elementos que constituem necessidades do cotidiano:pão, fome, água, sede, carência, relação.
A partir de alguns momentos que este texto provoca, queremos motivar para refletir sobre os encontros e os diálogos que acontecem.
2. Encontros e diálogos que rompem fronteiras
O encontro acontece na terra da mulher, a Samaria. Jesus é quem se desloca de sua terra, seus limites, seu chão e atravessa a terra estrangeira. Ele deixa a Judéia e volta para a Galiléia. Neste trajeto, o texto informa o óbvio para a comunidade que vive naquela região. É o caminho conhecido, mas o texto faz questão de afirmar novamente. Caminhos, quando já são conhecidos, são trilhados mecânica e irrefletidamente. Dizer o óbvio provoca a atenção. Dizer que era necessário passar por Samaria provoca na pessoa leitora e na ouvinte a possibilidade de pensar por que se está dizendo o que já é conhecido e aprendido.
Neste caso, remonta-se a um conflito antigo entre pessoas judias e samaritanas. O conflito é de origem étnico-religiosa, com conseqüências sociais e políticas. No Antigo Testamento, recebemos a informação histórica sobre as causas do conflito. As pessoas samaritanas são remanescentes de um processo de colonização promovido pela dominação assíria, que trazia pessoas de outras regiões colonizadas e as misturava com os habitantes locais. Tal processo gerou reações de desprezo e rivalidades entre aquelas pessoas que se consideram “legítimos filhos de Israel” e aquelas que são “misturadas”. Podemos encontrar estes relatos em 2Reis 17,24-31, Eclesiástico 50,26 e Esdras 4,2-9.
Esta carga histórica de rivalidade e conflito está presente na memória das pessoas que guardam o relato do encontro de Jesus com a samaritana como testemunho de sua fé. A afirmação de que Jesus, para chegar até seu destino, precisa passar pela Samaria, desencadeia estas lembranças na memória. Repetir o que já é conhecido, em situações conflituosas, pode ter esta função: verbalizar para provocar a reflexão.
Neste contexto de conflito, o encontro e o diálogo entre Jesus e a samaritana rompem barreiras étnico-geográficas. Ela é mulher e é samaritana. Sua condição de gênero impede que converse com um homem em lugar público e, especialmente, perto do poço (no imaginário daqueles grupos, o poço é um lugar mítico, simbólico da erótica, relacionamento amoroso – Gênesis 24 e 29; Êxodo 2,11-22). Sua pertença a um povo resulta em problemas para estabelecer relações de amizade e confiança, de ajuda e solidariedade com alguém do povo inimigo.
O início da conversa da mulher explicita o conflito. Não há intenção de esconder, nem de empurrar o conflito para longe. Apesar das rivalidades, os dois querem conversar. Talvez seja por causa do conflito que o diálogo acontece.
Este encontro abre as fronteiras das concepções teológicas que delimitam e excluem pessoas. Encontros são sempre possibilidades a serem construídas, ou melhor, possibilidades a serem reconhecidas. As barreiras entre as pessoas “escolhidas” e as pessoas estrangeiras também sofrem abalos na postura de Jesus e desta mulher.
Ver e testemunhar, encontrar e falar da experiência do encontro com Jesus são características básicas para o discipulado no Evangelho de João, como podemos ver em 1,29-37; 1,40-49. As mulheres no Evangelho de João percebem e reconhecem Jesus e, a partir daí, testemunham, transmitem e anunciam o evangelho. Assumem a tarefa ministerial na igreja e missionária no mundo.
3. Encontro e diálogos sobre a vida e o cotidiano
“Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida,
A gente quer comida, diversão e arte.
A gente não quer só comida,…
A gente não quer só comer,
A gente quer comer e quer fazer amor.
A gente não quer só comer,
A gente quer prazer pra aliviar a dor.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer dinheiro e felicidade.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer inteiro e não pela metade
Desejo,
Necessidade e vontade,
Necessidade e desejo.”
A música dos Titãs nos provoca a reflexão sobre a fome e a sede. Você tem fome de quê? Você tem sede de quê? Comida e desejo se juntam na vida diária. Desejo de comida. Necessidade e desejo são situações que se misturam no cotidiano. Os encontros que queremos promover deveriam ser motivados pelo desejo e pela fome de satisfazer nossa vida não pela metade, mas por inteiro, com dignidade.
O texto de Jo 4 nos ilumina neste movimento que promove encontros. Comida e água se misturam no diálogo cotidiano-teológico de Jesus e da mulher. São elementos do cotidiano. Jesus tem sede, mas, ao desenvolver sua fala, articula o seu discurso sobre a água usando uma linguagem metafórica.
A mulher lida com a água a partir de sua experiência prática. Sua linguagem se desenvolve em nível de preocupações diárias concretas. No imaginário da mulher, a água serve para matar a sede. São duas relações diferenciadas com as concepções e construções do simbólico e do imaginário.
Necessidade e desejo aqui se desencontram. Jesus tem sede e a mulher explicita o conflito, a barreira que há entre ambos para a prática da solidariedade. Necessidade e vontade se desencontram no corpo de Jesus. Ele senta para descansar. Está cansado e com sede. Mas a mulher quer falar do conflito, antes de tudo. Seu cansaço e sua sede precisam esperar pela sede de fala da mulher. E Jesus aceita o desafio proposto por ela.
Tudo isso acontece na hora sexta. Não é qualquer momento, nem,qualquer lugar. É a mesma hora em que o condenam à morte em outro momento (João 19,14).
Outro tema que surge da experiência cotidiana desta mulher é a sua vida matrimonial. Das águas, a conversa toma o rumo dos maridos. Quando estabelecem um acordo no diálogo, Jesus muda de assunto de novo. “Vai, chama teu marido e vem cá!” (v. 16). Ela não tem marido atualmente, mas cinco já tivera. Como lidar com este assunto? Ela pode ter sido divorciada. Os maridos podem ter pedido o divórcio, já que isso era possível e provável, se ela fosse estéril. Ou ela pode ser viúva, como foi Tamar, em Gn 38. Enfim, o tema dos cinco maridos é algo que tem preocupado os exegetas, mas, de acordo com o texto, foi algo que não preocupou Jesus, pois ele não deu continuidade ao assunto, e tampouco o levantou desde uma perspectiva moral.
Bem, o assunto veio à tona porque uma relação de proximidade e confiança se estabeleceu entre Jesus e a mulher. E é a partir deste momento, quando a sua vida pessoal é colocada no centro do diálogo, que a mulher toma outra atitude.
A mulher se transforma após este encontro-diálogo. Sua confissão de fé vem a seguir. Ela reconhece Jesus como profeta e como Messias. Diálogos sempre são transformadores. Sempre são motivadores de novas temáticas. Importa que as posturas sejam provocadoras de diálogo, de abertura, de acolhida para que as temáticas que britam a realidade encontrem lugar de reflexão em nossos grupos.
4. Encontros e desencontros
Os desencontros e as situações conflituosas são parte constitutiva de nossas reações. Importa tomá-las em conta, enfrentá-las sem medo, com coragem e disposição.
Os conflitos devem ser encarados num processo pedagógico, como momentos de crise que proporcionam as paradas necessárias para as mudanças. No entanto, sabemos que não somos educadas e educados para enfrentar conflitos. Somos ensinadas e ensinados a harmonizar, a pacificar. Mas, sabemos também que esta pacificação só será efetiva na medida em que situações conflituosas possam ser debatidas abertamente, sem medo de represálias ou exclusões.
Aprendemos deste encontro-diálogo como lidar com os desencontros. Os discípulos querem que Jesus coma e vão buscar comida. Ele, porém, tem sede e quer água. Quando eles voltam, admiram-se, porque ele está falando com uma mulher. E parece que o autor (autores/as) do texto do Evangelho de João também se admira da “inversão de ministérios”. Quem deveria anunciar a Jesus foi à cidade para buscar satisfazer simplesmente as necessidades do próprio corpo e do próprio grupo. E o texto apresenta (e elogia), ao final, esta mulher que gasta tempo com Jesus, dialoga em pé de igualdade com ele e depois, transformada pela relação estabelecida, vai à cidade anunciar o mestre e as coisas que ele havia falado. Ela vai para além dela. Os discípulos não conseguem seguir o mesmo caminho: em espírito e verdade.
Também no diálogo entre a mulher e Jesus, há um desencontro. Parece, contudo, que é preciso haver este desencontro para haver o encontro. A mulher verbaliza esse desencontro e, a partir daí, ele e ela estabelecem uma linguagem comum.
5. Para gerar novos encontros
A narrativa do encontro desenvolve uma liturgia. A memória registrada por escrito pode servir como elemento renovador da espiritualidade. Acontece a acolhida, uma confissão, o louvor, a conversão e o testemunho. A trajetória percorrida neste encontro-diálogo pode nos esquentar o coração, renovar nossas forças e sustentar nossas utopias.
A tradição coloca a evangelização de Samaria nas mãos de Filipe (At 8,5), com a confirmação dos apóstolos (At 8,14-17). Talvez assim possamos entender o que Jesus diz em Jo 4,37: “Um é o que semeia e outro é o que colhe”. Entretanto, mais adiante, na chamada oração sacerdotal,
Jesus retoma o testemunho da mulher samaritana “Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio da sua palavra, vierem a crer em mim” (Jo 17,20). Por meio da palavra da mulher, como lemos em Jo 4,39-42, muitas pessoas acreditaram. Não é por acaso que em 4,38 é usado o verbo apostollein.
É interessante ainda recordar que, no capítulo anterior do mesmo evangelho, Nicodemos também havia estranhado a fala de Jesus (Jo 3,3-5), no diálogo entre ambos. Mas, enquanto, no capítulo 3, a conversa parece ter um corte de forma brusca, o texto de Jo 4 vai mais adiante: Jesus aceita o convite da mulher e de seus compatriotas e fica ali por dois dias (4,40). Exatamente o oposto do que lemos em Jo 1,11: “Veio para o que era seu, mas os seus não o acolheram”.
Uma mulher tem a iniciativa de deixar o cântaro aos pés de Jesus e ir à cidade, falar de sua experiência. Faz uso da mesma frase que Jesus tinha usado em Jo 1,39. Ele disse para os discípulos, ela para a sua gente, seus conterrâneos: “Vinde e vede!”
Fonte: Texto extraído do Livro Bíblia e Educação Popular: encontros de solidariedade e diálogo. Elaine Neuenfeldt é assessora e ex-diretora nacional CEBI. É pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB e atualmente contribui na Federação Luterana Mundial, em Genebra.