Fazendo ecoar o Dia Internacional Contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças, o CEBI partilha esta alise, que é resultado de uma construção coletiva das militantes do Fórum Cearense de Mulheres/AMB, é parte do PNV 389 “Feminicídio: ontem, hoje, sempre? NUNCA!!! – CEBI“.
Mulher sem nome, sem voz. Um corpo violado e profanado. (Jz 19)
A história da humanidade é repleta de violências, guerras, invasões, revoluções sangrentas, genocídios, ecocídios e por aí vai. Violências físicas e violências simbólicas são reveladas nos preconceitos raciais, xenófobos, sexistas, de classe, geracionais e, de modo particular, na vida de mulheres.
A Bíblia também é cheia de narrativas violentas e desconcertantes para serem entendidas como vontade de Deus.
No mito da criação, ao concluir sua obra “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31).
Se tudo é muito bom, como aceitar “jogar nenês contra a rocha” (Sl 137,9); “mandar um anjo exterminar outros povos” (Ex 23); “empalar as pessoas para afastar a ira divina” (Dt 13,9); “não usar de misericórdia” (Nm 25,4-5)?
O PNV 311, intitulado “Violências em nome de Deus” de Luiz Dietrich, tem sido leitura recorrente para mim. Acredito que no CEBI deveríamos nos debruçar sobre essa questão nos estudos em grupo, nos espaços formativos para “libertar Deus da autoria de tanta atrocidade”. Principalmente nesses tempos tão aterrorizadores que estamos vivendo.
“Eu vi a miséria do meu povo, ouvi seu grito, desci para libertá-lo” (Ex 3,7); “Eu vim para tenham vida e a tenham em plenitude” (Jo 10,10); “Não há judeu nem grego, homem nem mulher; sois um só em Cristo” (Gl 3,28).
São chaves de leitura com as quais procuro orientar minha caminhada como biblista cebiana e, sobretudo, como mulher.
E aí nos deparamos com o texto de Juízes 19, “a mais horrível história da Bíblia Hebraica” (Um corpo de escrita de Mieke Bal-in Juízes – a partir de uma leitura de gênero, p. 249). Um dos textos bíblicos que mais nos inquieta. E tem a ver com FEMINÍCIDIO.
Claro que o termo feminicídio não existe nos textos bíblicos, mas sua nefasta ação sim. E, infelizmente, o encontramos ao longo de várias narrativas bíblicas. Vejamos então Jz 19,11-30. É o relato de um estupro, de um feminicídio. Por si só o texto horroriza, choca, provoca indignação, incredulidade, majoritariamente de mulheres.
Mas não é um texto muito lido nos encontros, nas reflexões. Por ser tão horrível e estar na Bíblia. É certo que há literatura e subsídios a respeito. Porém, não é um texto que esteja sempre sendo “ruminado” nos encontros. Pelo menos não do nosso conhecimento.
Buscamos algumas traduções da Bíblia para ver como é apresentado o texto e os comentários de rodapé dos especialistas. Geralmente destacam o tema em negrito no início de cada capítulo.
Comentários pesquisados nas seguintes Bíblias:
TEB – O CRIME DE GUIBEAÁ (Jz 19,1-36)
“Conhecer”– sentido sexual como em Gn 19,5 (v 22);
“Infâmia” contra o homem – lei da hospitalidade desrespeitada (v 23);
“Levita joga a mulher para os agressores – do ponto de vista do leitor moderno, comportamento ignóbil.
JERUSALÉM – O LEVITA DE EFRAIM E SUA CONCUBINA (Jz 19,1-30)
Destaque de 19,11-30 – O CRIME DO POVO DE GABAÁ
“Benjaminitas faltam gravemente transgredindo o direito sagrado à hospitalidade” (v 15);
“Ancião cumpre dever de hospedeiro até o heroísmo” – entenda: heroísmo é entregar a filha aos agressores (v 23);
“Tem um comportamento abominável” (v 24);
“Sinistra mensagem de vingança” (v 29);
Conclusão: Verifica-se que o estupro não é denunciado como crime hediondo. O que é ressaltado como sendo crime a falta de hospitalidade com os homens. Assim fica evidente a naturalização da violência contra as mulheres no mundo bíblico sendo utilizada como uma das justificativas para as violências de hoje.
Outras fontes
Pentateuco e História Deuteronomista – JUÍZES (José Bortolini)
Faz uma análise do livro destacando período, de tradição sacerdotal em sua maioria, “puxar o tapete” do sistema tribal. Informações muito boas e pertinentes que ajudam a compreender o livro.
Quanto aos capítulos 19 a 21 destaca:
Solidariedade – ato sagrado que os benjaminitas transgridem.
HOSPITALIDADE ALGO SAGRADO – esse é o crime de GABAÁ…
Não se discorda que seja sagrada a hospitalidade. O que chama atenção é o fato de a mulher violentada várias vezes não merecer uma linhazinha sequer.
JUÍZES – a partir de uma leitura de gênero – organizado por Athalya Brenner
Ambiente social é o sistema patriarcal:
Homens maior poder e privilégios;
- Mulheres direitos e privilégios baseados na posição social de seus patronos – pais-esposos-filhos; sexualidade é trunfo valioso transferido do pai para esposos; virgindade valorizada entre as solteiras em vista de casamento; casada proteger e aumentar o valor através da maternidade.
- Homossexualidade – rejeitada por não resultar na perpetuação da família, tribo, nação.
“Uma vez que o crime de estupro homossexual naquele contexto era ofensa mais séria do que o estupro heterossexual, o levita, ansioso por salvar-se, empurra a mulher para os homens”, os quais abusam dela a noite inteira.
É revoltante a frieza do levita no dia seguinte ordenando a mulher para se levantar e o seguir. E o horror do esquartejamento, da profanação do corpo da mulher.
Mieke Bal salienta que Jz 19 é a história da rejeição, do estupro pela turba, do assassinato e do esquartejamento de uma jovem cujo corpo é em seguida usado como escrita para convocação à guerra contra os benjaminitas.
“A mulher morre várias vezes; ela nunca para de morrer; não é só objeto da linguagem corporal; seu corpo também é usado como linguagem pelo marido que a violenta quando envia sua carne como mensagem.” (p. 277)
“Tudo permanece por ser dito sobre o estupro, o assassinato e a mutilação da concubina.” (p. 249).
E nós, como educadoras e educadores da leitura popular e libertária da Bíblia, como nos posicionamos perante esse texto? Consideramos tão horripilante que não conseguimos ruminá-lo devidamente e dele tirarmos luzes que nos iluminem na realidade atual e concreta de tantos feminicídios? Ou não nos sentimos deveras tocadas e tocados por essa macabra narrativa?
Bom, por mais que o texto nos choque, está na Bíblia, já ouvi alguém dizer numa assessoria bíblica. E eu pergunto: Por estar na Bíblia é palavra de Deus? De qual Deus?
Está na Bíblia, é verdade, mas está, sobretudo, na vida real, no cotidiano, no crescente número de feminicídios não obstante leis, equipamentos de proteção, movimentos de mulheres, de lutas dos movimentos populares…
Tudo isso é importante e são avanços, conquistas, mas não basta. Enquanto não houver uma “conversão” verdadeira à causa das mulheres a todas as outras causas que visam à construção de um outro mundo possível. Mundo onde os seres humanos, em simbiose com a natureza, sejam o centro da organização social. Até que atinjamos este objetivo, mulheres continuarão sendo mortas por serem mulheres; pessoas negras por serem negras, pobres por serem pobres…!
E eu me questiono muito. O que faço enquanto mulher, cristã, biblista, feminista?
Indignar-me quando a mídia divulga casos revoltantes de desrespeito às mínimas condições de direitos humanos? Participar dos eventos do 8 de março?
Que a questão de gênero é séria e precisa ser respeitada! Que as lutas feministas precisam ser assumidas por toda a comunidade cebiana e não apenas pelas mulheres!
E vou além. Aliadas às causas feministas, também temos que assumir, de fato, as causas antirracistas e toda as que que excluem pessoas por idade, por classe social, por diferenças religiosas, por não crenças religiosas.
Precisamos construir mecanismos de formação política permanente, o que possibilitará uma militância em sintonia com a proposta amorosamente revolucionária de Jesus de Nazaré.
Enfim, pela construção de uma sociedade igualitária, justa no sentido pleno da palavra onde possamos dizer “tudo está interligado nessa casa comum”.
Ingenuidade? Talvez.
Sonho, utopia? Mas sem esses elementos, como seguir em frente?
E, claro, com fé em Javé, divindade libertadora de todas as formas de opressão e no seguimento do Mestre de Nazaré.
“Eu vim para que tenham vida e a tenham em plenitude.” (Jo 10,10)
A morte simbólica das mulheres pela invisibilidade, pelo silenciamento e pela difamação
A violência contra as mulheres nas suas diferentes expressões tem aumentado. As estatísticas do último ano, em todos os estados brasileiros, são estarrecedoras e sem dúvida convidam ao pensamento e à mobilização. Nós que fazemos o CEBI sentimos que temos que refletir sobre este aumento da violência e nomear algumas causas desta situação.
Primeiramente, é bom lembrarmos que as narrativas hegemônicas da história da humanidade têm sido história sobre e desde as perspectivas dos homens, e sabemos que a história das mulheres precisa ainda ser resgatada, recontada, a partir de um novo prisma embasando a nossa busca da tão sonhada igualdade, igualdade esta num sentido amplo, não no sentido limitado e não adequado “iguais aos homens”. Neste sentido, vemos a necessidade e mesmo a urgência de construirmos entre nós, seres humanos, processos igualitários.
Mas o que vem justificando ao longo do tempo essa violência tão “naturalizada” na nossa história, esse processo tão desigual?
Sabemos que a dimensão religiosa da vida em todas as suas facetas é de suma importância e “desde o início da década de 1960 muitas mulheres em diferentes partes do mundo, influenciadas pelo feminismo, começaram a perceber de forma mais clara as relações entre a face simbólica e masculina de Deus e a opressão das mulheres” (IVONE, 2007, p. 15) justificadas através das Escrituras Sagradas.
Poderíamos dar inúmeros exemplos para demonstrarmos o androcentrismo simbólico e a dominação patriarcal dentro da Bíblia. Mas tomemos apenas dois exemplos: a mulher anônima que unge Jesus e Miriam de Magdala, mais conhecida como Maria Madalena.
A mulher que unge Jesus
Mc 14, 3-9: em Betânia, quando Jesus estava à mesa em casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher, trazendo um frasco de alabastro cheio de perfume de nardo puro, caríssimo; e quebrando o frasco, derramou-o sobre a cabeça dele. Alguns dentre os presentes indignavam-se entre si: “para que esse desperdício de perfume? Pois poderia ser vendido esse perfume por mais de trezentos denários e distribuído aos pobres”. E a repreendiam. Mas Jesus disse: “deixai-a. Por que a aborreceis? Ela praticou uma boa ação para comigo. Na verdade, sempre tereis os pobres convosco e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes o bem, mas a mim nem sempre tereis. Ela fez o que podia: antecipou-se a ungir o meu corpo para a sepultura. Em verdade vos digo que, por toda parte onde for proclamado o Evangelho, ao mundo inteiro, também o que ela fez será contado em sua memória”.
Mt 26, 6-13: estando Jesus em Betânia, em casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher trazendo um frasco de alabastro de perfume precioso e pôs-se a derramá-lo sobre a cabeça de Jesus, enquanto ele estava à mesa. Ao verem isso, os discípulos ficaram indignados e diziam: A troco do que esse desperdício? Pois isso poderia ser vendido bem caro e distribuído aos pobres”. Mas Jesus, ao perceber essas palavras, disse-lhes: “Por que aborreceis a mulher? Ela, de fato, praticou uma boa ação para comigo. Na verdade, sempre tereis os pobres convosco, mas a mim nem sempre tereis. Derramando este perfume sobre meu corpo, ela o fez para me sepultar. Em verdade vos digo que, onde quer que venha a ser proclamado o Evangelho, em todo o mundo, também o que ela fez será contado em sua memória”.
Jo 12, 1-8: seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde estava Lázaro, que ele ressuscitara dos mortos. Ofereceram-lhe aí um jantar; Marta servia e Lázaro era um dos que estavam à mesa com ele. Então Maria, tendo tomado uma libra de um perfume de nardo puro, muito caro, ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os cabelos; e a casa inteira ficou cheia do perfume do bálsamo. Disse, então, Judas Iscariotes, um de seus discípulos, aquele que o entregaria: “Por que não se vendeu este perfume por trezentos denários para dá-los aos pobres?” Ele disse isso, não porque se preocupasse com os pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa comum, roubava o que aí era posto. Disse então Jesus: “deixe-a; ela conservará esse perfume para o dia da minha sepultura! Pois sempre tereis pobres convosco; mas a mim nem sempre tereis”.
Lc 7, 36-50: Um fariseu convidou-o a comer com ele. Jesus entrou, pois, na casa do fariseu e reclinou-se à mesa. Apareceu então uma mulher da cidade, uma pecadora. Sabendo que ele estava à mesa na casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume.
E, ficando por detrás, aos pés dele, chorava; e com as lágrimas começou a banhar-lhe os pés, a enxugá-los com os cabelos, a cobri-los de beijos e a ungi-los com o perfume.
Vendo isso, o fariseu que o havia convidado pôs-se a refletir: “Se este homem fosse profeta, saberia bem quem é a mulher que o toca, porque é uma pecadora!” Jesus, porém, tomando a palavra, disse-lhe: “Simão, tenho uma coisa a dizer-te” – “Fala, mestre”, respondeu ele. “Um credor tinha dois devedores; um lhe devia quinhentos denários e o outro cinquenta. Como não tivessem com que pagar, perdoou a ambos. Qual dos dois o amará mais?” Simão respondeu: “Suponho que aquele ao qual mais perdoou”. Jesus lhe disse: “Julgaste bem”.
E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: “Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me derramaste água nos pés; ela, ao contrário, regou-me os pés com lágrimas e enxugou-os com os cabelos. Não me deste um ósculo; ela, porém, desde que entrei, não parou de cobrir-me os pés de beijos. Não me derramaste óleo na cabeça; ela, ao invés, ungiu-me os pés com perfume. Por essa razão, eu te digo, seus numerosos pecados lhe são perdoados, porque ela demonstrou muito amor. Mas aquele a quem pouco foi perdoado mostra pouco amor”. Em seguida, disse à mulher: “Teus pecados são perdoados”. Logo os convivas começaram a refletir: “Quem é este que até perdoa pecados?” Ele, porém, disse à mulher: “Tua fé te salvou; vai em paz”.
Vemos que a história da unção é contada nos quatro evangelhos. E um dos critérios para que o fato tenha sido relevante é ser relatado em todos os evangelhos que constam na Bíblia.
Outro detalhe importante, apesar das diferenças, os quatro evangelhos refletem o mesmo episódio básico: uma mulher unge Jesus. O episódio provoca objeções, a que Jesus responde aprovando a ação da mulher.
Em Lucas, a mulher mencionada foi convertida numa grande pecadora, que é perdoada por Jesus. Também em Lucas, foi apenas uma unção dos pés de um hóspede. Segundo Elisabeth Fiorenza, “se a história original tivesse sido apenas uma história de unção dos pés de um hóspede, seria bem pouco provável que um gesto tão comum viesse a ser recordado e recontado como a proclamação do evangelho. É, portanto, muito mais provável que na história original a mulher tenha ungido a cabeça de Jesus”. (FIORENZA, 1992, p. 9). No Primeiro Testamento o uso do óleo como unguento era um rito sagrado usado para ungir profetas e reis, como preparo para suas “missões”.
Na tradição joanina a unção também foi dos pés, mas a mulher não é deixada sem nome, foi Maria, irmã de Marta e Lázaro. Contudo, o fato dela enxugar a unção com os cabelos chama a atenção. É possível que esse gesto aponte antecipadamente para a última ceia de Jesus, quando Jesus lava os pés dos discípulos, além de retratar a verdadeira discípula Maria de Betânia em oposição ao discípulo infiel Judas Iscariotes.
Assim, a unção de Jesus deve ser entendida como o reconhecimento profético de Jesus, o Ungido, o Messias, o Cristo. “Em consonância com a tradição, foi uma mulher que assim nomeou Jesus por sua ação simbólica profética. Trata-se de uma história politicamente perigosa” como nos afirma Elisabeth Fiorenza (1992, p. 10).
Salientamos que, apesar do dito de Jesus, “em verdade eu vos digo que, onde quer que venha a ser proclamado o evangelho, em todo mundo, também o que ela fez será contado em sua memória” (Mc 14,9//Mt 26,13), esta ação simbólica não se tornou conhecida pelos cristãos e cristãs e seu nome nem sequer foi preservado.
É importante lembrar que o Evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito e serviu de base para Mateus e Lucas. O episódio da mulher que ungiu Jesus, neste evangelho, situa-se entre a afirmação de que os líderes religiosos do povo queriam prender Jesus e o anúncio de que Jesus seria traído por Judas, em troca de dinheiro. Recorda-se o nome do traidor, mas se esquece do nome da discípula fiel porque era mulher.
Além do mais, os líderes homens e discípulos não entenderam o messianismo sofredor de Jesus e o abandonaram; as discípulas mulheres, que seguiram desde a Galileia até Jerusalém, surgem como as verdadeiras discípulas na narrativa da paixão. Elas são as seguidoras fiéis (akolouthein) de Jesus; que compreenderam que o seu ministério era diakonia, “serviço” e não de um rei glorioso (Mc 15,41).
Maria Madalena
No movimento de Jesus, embora não seja dada ênfase, havia mulheres, e não eram poucas. As mulheres eram discípulas e, assim como os homens, seguiam-no na Galileia (Lc 8, 1-6). Jesus não fazia distinção entre mulheres e homens; pelo contrário, uma das suas características consistia em propor uma ordem de vida diferente do modelo hierárquico ao qual estamos acostumadas. Jesus era muito atrevido em seus ensinamentos: era contrário àqueles que queriam ocupar os primeiros postos e falava mal das autoridades políticas que submetem os outros. “Entre vocês não será assim” (Mc 10, 43-45//Mt 20, 26-28//Lc 22, 24-27), dizia a seus seguidores. Tampouco falava muito bem das autoridades religiosas, que se consideravam muito santas e que marginalizavam aqueles que consideravam impuros ou que se aproveitavam das viúvas.
A partir das pesquisas de Lilia Sebastiani, Maria Madalena (Maria de Magdala) é a mulher mais citada no Segundo Testamento e, curiosamente, a única Maria citada por sua procedência e não pelo seu parentesco. Ela não é “filha de”, “esposa de”, “irmã de”, denotando a sua independência, o que não era comum naquela época.
Magdala era uma cidade próspera, rota internacional que concorria para que tivesse grande comércio e uma diversidade de pessoas e consequentemente de religiões. Gozava de uma situação privilegiada, à margem oeste do mar da Galileia, fortificada por pedras em ambos os lados, facilmente podia ser fechada pelos habitantes que se revoltavam contra o jugo romano, e sabemos que, em 53 a.C. uma revolta dos galileus foi sufocada pelos romanos em Magdala. Pode-se concluir que era uma cidade bastante sofrida pelo jugo e crueldade de Roma, herança e vivência de Maria de Magdala, que a marcaram com traços indeléveis.
Nos escritos canônicos em que Madalena foi citada explicitamente, ou seja, doze vezes nos evangelhos, sempre foi em relação a Jesus, o que Ele fez e/ou disse.
Lucas 8, 1-3 descreve que os Doze acompanhavam Jesus anunciando e pregando a Boa-nova do Reino de Deus, bem como algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios, Joana, mulher de Cuza, procurados de Herodes, Susana e várias outras, que O serviam com seus bens. Nesse relato, um dado que chama atenção é o fato de ter sido descrita a doença apenas de Maria Madalena o que nos leva a crer que a cura foi de grande importância pela gravidade da doença. Este episódio levou a várias interpretações, concorrendo na tradição do cristianismo ocidental para identificar esta possessão demoníaca com pecado sexual.
Sabe-se, entretanto, que a mentalidade judaica entendia como possessão diabólica, sem se acentuarem aspectos morais, o que na atualidade entendemos como enfermidades, conforme a reflexão de Lilia Sebastiani.
O número sete na Bíblia indica totalidade, o que nos demonstra que Maria Madalena estava totalmente arrasada, incapaz. Assim, a cura tornou-se “conversão, não no sentido banal e moralista de arrependimento, e sim no sentido de ingresso numa vida autêntica e libertação de um “estado de escravidão”. Ressalte-se também que Jesus expulsou vários demônios de homens, aliás, em Lucas 8,30, foi uma legião. No entanto, em nenhum dos casos foi feito o paralelo com conotação moral e, menos ainda, sexual.
Outro ponto interessante de se mencionar é que não se tem notícia de nenhum homem curado por Jesus que tenha em seguida seu nome mencionado como discípulo, o que demonstra a cumplicidade de Jesus com as mulheres.
Salienta-se, ainda, a importância de Maria Madalena para a comunidade que o Evangelho de João representa, por nos ter transmitido um cuidadoso relato sobre seu encontro com Jesus pós-pascal (Jo 20, 11-18), em que ela desempenha a missão única de Apóstola dos Apóstolos, anunciando-lhes o sepulcro vazio e a visão do Ressuscitado. Somente neste Evangelho constam falas de Maria Madalena e em Jo 20,18 ela nos diz: “Eu vi o Senhor!” que é a formulação que Paulo usa para legitimar seu próprio apostolado (cf. 1Cor 9,1).
No curso da história, até o quinto século, Maria Madalena era tida em alta consideração, em tal grau que se comparava com Maria, a mãe de Jesus, em popularidade. Deste período em diante, ocorreu uma alteração na tradição eclesiástica. Na tradição oriental, Maria Madalena continuou sendo a testemunha da ressurreição. Foi a tradição ocidental que identificou Maria Madalena com a mulher que era pecadora em Lucas, a irmã de Marta, e a tornou a “penitente”.
A tendência de confundir Maria Madalena com a pecadora anônima de que fala o Evangelho de Lucas (7, 36-50) e a pecadora com a mulher que ungiu Jesus antes da Paixão (Mt 26, 6-13 e Mc 14, 3-9) e no quarto evangelho com Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro (Jo 11, 2) começou cedo, porém esporádica ou apenas sugerida. Mas, o Papa Gregório Magno, conhecido por seus cantos gregorianos, foi quem acolheu e proclamou como certa esta identificação. Ele era um orador popular e os temas que ele dava mais ênfase eram o Juízo Final e o chamado à penitência. Seus sermões sobre Maria Madalena como uma penitente por excelência tornaram-se clássicos.
Salientamos, também, que com a descoberta dos evangelhos apócrifos (que não constam do cânone do Segundo Testamento) de Nag Hammadi, em 1945, foi encontrado o Evangelho de Maria Madalena que tem pontos comuns com o Evangelho de João, que foi considerado inspirado. Neste evangelho, Maria de Magdala é a figura principal, pois ela é a apóstola que possui os ensinamentos de Jesus e que dialoga teologicamente com os apóstolos André, Levi e Pedro.
Assim, temos uma pequena reflexão em que a importância de Maria Madalena no início do cristianismo foi sendo anulada, além de tê-la transformado em pecadora.
Podemos usar as palavras da artista Judy Chicago: “Todas as instituições de nossa cultura dizem-nos – por palavras, fatos e, pior ainda, pelo silêncio – que somos insignificantes. Mas nossa herança é nossa força”.
Que se possa restaurar a imagem de Maria de Magdala e proclamar para todas as mulheres e homens sua importância, não somente no início do cristianismo, mas também hoje e assim ter coragem para lutar por nosso sonho de que “Outro Cristianismo é possível!”