Leia a reflexão sobre João 6. 22-35, texto de Lilian Sarat de Oliveira, a Lilith.
Boa leitura!
O Evangelho de João, que nos traz noticias das comunidades joaninas do primeiro século, me parece o mais poético dos evangelhos. A imagem de Jesus para essas comunidades se refletia em metáforas e figuras associadas a natureza e a realidade em que ele se encontrava. Ao caminhar entre o povo transformava água em vinho e se transformava em Porta, Pastor, Pão, Agua, Figueira, Palavra, Poesia… Sua presença era o sinal do Sagrado entre as multidões que o seguiam.
Logo no inicio do Evangelho, Jesus é apresentado como a Palavra que se fez carne e que armou sua tenda entre nós. Jesus é a palavra criadora e seu corpo é templo de Deus, é a tenda, a morada, o lugar seguro para aqueles e aquelas que o seguiam. Para as comunidades joaninas era fundamental trazer à memória o mistério da encarnação, para afastar a crença gnóstica que negava a corporeidade do Mestre Jesus. Por isso Jesus é afirmado como o Lógos, o Verbo, o Discurso, a Palavra, a Poesia que se tornou corpo, ser humano entre nós. (Jo 1).
A resistência destas comunidades, era alimentada pela Palavra que lhes traziam à memória os sinais, os grandes feitos de Jesus na sua jornada nesta terra. Um dos sinais da resistência é a alegria celebrada num casamento no capitulo 2, quando Jesus transforma água em vinho e não permite assim, que a leveza e a festa acabasse diante dos desafios da existência. Sobreviver a violência, desigualdades e injustiças sem uma dose de alegria, expressa no vinho, é impossível e nos faz lembrar do poeta Chico Buarque quando cantou: “a gente vai levando de teimoso de pirraça, que a gente vai tomando , que também sem a cachaça ninguém segura esse rojão”.
A situação do povo das primeiras comunidades, muito se assemelha aos tempos sombrios que vivenciamos: o fundamentalismo religioso, a intolerância, as desigualdades sociais, raciais e de genero, a violência contra os mais pobres parece que sempre houveram na história da humanidade, assim como sempre houveram grupos de resistências, comunidades de ajuda, ações de solidariedade que se juntam para resistir a fome e as violências. Nas comunidades joaninas não era diferente, muitos eram os desafios tanto internos quanto externos, e para continuar re-existindo era preciso trazer a memória a imagem do Jesus que alimenta a alma com suas palavras mas, também, se preocupa com a fome do pão, o alimento para o corpo.
A fome é, sem dúvida, um sinal da desigualdade social presente desde os tempos mais remotos e Jesus sabia que não era possível nenhuma ação transformadora de barriga vazia. Por isso se recusou a despedir as pessoas que o seguiam com fome, e no capitulo 6 temos um dos sinais mais bonitos e sensíveis do Mestre, quando ele alimenta a multidão com cinco pães e dois peixinhos. Alimentar o povo faminto de Palavra e de Pão é sinal de que não apenas discursos podem trazer vida e liberdade, mas atender as necessidades básicas da existência fazia parte do Projeto de Jesus. Quando as pessoas o procuravam, ainda perplexas com seus grandes feitos, Jesus denuncia a intencionalidade daqueles que o seguiam pelo pão material apenas, e nos chama à atenção para a necessidade das pessoas, não só de pão mas de palavra, poesia e profecia. Como dizia Nando Reis: “a gente não quer ser comida, a gente quer comida, diversão e arte…”.
Nos dias atuais não é diferente, a fome é a causa mais urgente e alimentar o corpo é fundamental para a existência e resistência. Vivemos uma realidade cruel de insegurança alimentar, a comida cada vez mais cara, falta de emprego, de saúde e de educação, quadro que se agravou ainda mais na pandemia que vivenciamos, e como o Evangelho pode nos iluminar? O Evangelho de João nos anima a continuar resistindo com alegria, amor, fé e esperança e os sinais do Mestre Jesus são alimento para fortalecer nosso corpo e nossa alma. Ele nos lembra que qualquer forma de espiritualidade, deve estar pautada na ajuda humanitária e só tem sentido quando é comunitária e coletiva. Nossa sobrevivência e existência depende do pão para matar a fome e também da palavra e da poesia para saciar a alma. Por isso Jesus afirma: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim nunca mais terá fome…”Suas palavras alimentaram a alma daquele povo faminto e saciou a fome de pão e de poesia da humanidade, e hoje somos desafiados a resistir às trevas deste século, partilhando nosso pão, nossos saberes, nossos sabores, nossos amores e muita poesia. Como diria o poeta Emanuel Marinho: “poesia não compra sapato, mas como andar sem poesia? ”
Que as palavras do poeta e profeta Jesus possa saciar nossa alma tão cansada das injustiças e que nunca falte o pão na nossa mesa e a poesia pra nossa alma.