Leia a reflexão sobre Marcos 4,35-41, texto de Itacir Brassiani.
Boa leitura!
A vida é caminhada, uma permanente travessia. Engajamo-nos nas lutas e sentimo-nos atraídos a estabelecer aqui nossa morada, mas, ao mesmo tempo, sabemos que somos migrantes, cidadãos de uma sociedade que ainda está para ser construída. Paulo expressa esse misterioso dinamismo: o amor de Cristo nos atrai e pressiona, convidando-nos a passar de uma vida centrada em nós mesmos para uma vida que tem seu foco nos outros. Radicados em Cristo e com os olhos fixos nele, somos chamados a ser mulheres e homens novos. As próprias festas juninas, suspensas neste ano, nos diz que a felicidade está em ser simples e ser povo.
De fato, são muitas e diversas as nossas travessias. Há uma travessia que leva do ‘eu’ fechado e indiferente ao ‘nós’ aberto e acolhedor; outra que nos leva de um conhecimento exaustivo e seguro, de uma ciência que imagina desvendar todos os mistérios, de uma ideologia que oferece estratégias para todos os desafios, à reverente consciência de que todas as coisas estão envoltas num mistério que nos ultrapassa e abraça por todos os lados; e há também a travessia possível e urgente de uma sociedade injusta e desigual a uma sociedade inclusiva e solidária… E muitas outras!
As travessias não costumam ser tranquilas! Ao lado e contra o movimento de êxodo e expansão que dá vida a todo o universo, há também uma tendência à inércia, à estabilidade. Existem ventos contrários à mudança, forças que nos convidam a permanecer fechados/as, tentações que nos pedem que não troquemos um mal que conhecemos por um bem que é apenas utopia. É triste quando, na própria Igreja, nascida para acompanhar a humanidade em suas múltiplas travessias, o medo paira como sombra que preenche todos os espaços e inibe todos os passos, e isso não obstante todos os apelos e sinais lançados pelo Papa Francisco.
É claro que aquilo que é desconhecido e foge ao nosso controle nos amedronta. Controlar as situações, ou submeter-se ao controle delas, nos dá sensação de segurança e de verdade. E o medo acaba sendo a mãe das submissões que limitam, das dominações que esterilizam, das ideologias que matam. É este medo que está na raiz do clima de intolerância que vivemos no Brasil, e promovê-lo é uma estratégia que serve aos dominadores de plantão. No coração de algumas liturgias e pregações, e por trás de muitas mensagens políticas, está a intenção de criar medo e, assim, manter a dominação.
O evangelho de Marcos nos revela que os próprios discípulos de Jesus desconhecem e temem a travessia. Depois de terem ouvido da boca de Jesus parábolas que sublinham o dinamismo escondido do Reino de Deus, eles estão desconcertados, e temem desesperadamente a travessia que os leva ao encontro dos estrangeiros, dos pagãos. Tudo parece escuro, tanto dentro como fora deles. E Jesus diz que na raiz deste medo está a falta de fé, a expectativa que Deus elimine magicamente as dificuldades da travessia da vida ou nos leve imediatamente à outra margem, à “velha normalidade” anterior à pandemia.
A quem Jesus se dirige quando fala “Cale-se! Acalme-se!”? Ao mar e ao vento que, aos olhos dos discípulos ou aos próprios discípulos? Mais que o mar, são eles que estão agitados! O que os aterroriza é a necessidade de mudar de ideia, de ideologia, de projeto de vida, e entrar em diálogo com quem é e pensa diferente. Mas, enquanto eles se apavoram e desesperam, Jesus dorme despreocupadamente. Jesus sabe que a vida está na travessia! Quem o desperta não é o vento ameaçador, mas o grito apavorado dos discípulos.
Jesus se importa com o risco que seus discípulos e discípulas enfrentam. A travessia é necessária e desejada por Deus, e ele nos acompanha em todas elas. É verdade que, às vezes, Jesus parece dormir e não tomar conhecimento dos riscos que enfrentamos. Mas ele não assume a responsabilidade e o lugar que nos cabem nessa passagem. Ele confia em nós, e a única maneira de chegarmos à maturidade é assumir nossas próprias responsabilidades. Não há travessia automática e indolor, como não há vida na estabilidade absoluta.
Jesus de Nazaré, peregrino e companheiro nas travessias que a vida nos pede e oferece: permanece neste barco agitado no qual se transformou o mundo, a tua Igreja e a nação brasileira. Desperta em nós a certeza consoladora de que tu nos guias ao porto desejado, e que teu amor nos impulsiona a não cair na armadilha do medo. Sustenta-nos em todas as travessias, pois se permanecermos fechados em nós mesmos/as, seguros/as em nossas ideologias, encaracolados/as em nossas doutrinas, acabaremos afundando. E converte nosso medo em fé e nossa sede de segurança em vontade de caminhar. Assim seja! Amém!