4 de abril de 2019. O músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, levava a família para um chá de bebê de uma amiga quando recebeu mais de 80 balas em sua direção, disparadas por militares do Exército no bairro de Guadalupe, zona oeste do Rio de Janeiro. Em referência a este caso, o rapper Emicida escreveu, na música Ismália, que “80 tiros fazem lembrar que existe pele alva e pele alvo”.
6 de maio de 2021. Pouco mais de dois anos depois, ao menos 29 pessoas são assassinadas na favela do Jacarezinho. O “ao menos” deve-se ao fato de que a cada dia novos corpos são encontrados.
Corpos, em sua maioria, negros. Assim como o de Evaldo. Corpos negros assim como o da maioria das 944 pessoas mortas em operações policiais no Rio de Janeiro, desde junho de 2020, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu as operações em favelas, por ocasião da pandemia.
A chacina do Jacarezinho, na zona Norte do Rio de Janeiro, retrata uma violência que a Rede Jubileu Sul Brasil e a 6ª Semana Social Brasileira “Mutirão pela Vida, por Terra, Teto e Trabalho” repudiam veementemente e que denunciam há décadas: há uma política de militarização deliberada no Estado para criminalização da pobreza e do povo pobre trabalhador, entrelaçada com o racismo que é estrutural e estruturante das relações sociais, políticas e econômicas do nosso país. Para além do Brasil, o que se observa é uma ofensiva na região, a exemplo da Colômbia, de Honduras e do Haiti, com a militarização crescente dos Estados nacionais para matar e reprimir a população mais vulnerabilizada.
À época do assassinato de Evaldo, o presidente da República, Jair Bolsonaro, disse que o fato havia sido um “incidente” e que “o Exército não matou ninguém”. Agora, o seu vice-presidente, Hamilton Mourão, afirmou “ter quase certeza” de que as pessoas assassinadas no Jacarezinho eram “marginais”.
As declarações de Bolsonaro e Mourão espelham com fidelidade o caráter genocida da gestão atual do Governo Federal e escancaram algo mais amplo, que são as milícias buscando ampliar seu controle territorial, eleitoral e seus “negócios” criminosos, articulados com grupos políticos do Rio de Janeiro. Vinculados ao Estado, diretamente organizadas por servidores da segurança pública, os grupos armados de milícias vêm crescendo no Rio e estariam em pelo menos 57% das comunidades fluminenses (confira o mapa), contando com apoio de prefeituras e setores do governo estadual alinhados com a política genocida federal.
Não por acaso, mesmo com a decisão do STF mencionada acima, as operações policiais continuam no Rio de Janeiro, onde o Estado não respeita a vida nem as leis. O que se vê é uma violência policial estrita às comunidades onde é preciso expulsar uma facção narcotraficante para que a milícia se amplie, não importando quantas vidas serão perdidas.
Mais do que nunca, vemos territórios deliberadamente abandonados pelo Estado, com as polícias agindo ao arrepio das leis e dos direitos humanos para que as milícias ganhem espaço e lucrem com seus crimes. As populações vivem à mercê das milícias criminosas e ainda sofrem com a chegada de outra facção do tráfico, a que vende drogas e que aceita pagar pela autorização dos milicianos.
Violência frequente, coronavírus, falta de vacina, uma pandemia que ultrapassa 420 mil mortes, fome, desemprego e o genocídio do povo negro, pobre e periférico, que segue naturalizado por parcela da opinião pública com apoio das mídias tradicionais propagando a falácia de que são “suspeitos”, são “criminosos” e, portanto, devem morrer.
Como diz Emicida, na mesma música Ismália, “porque um corpo preto morto é tipo o hit das paradas, todo mundo vê, mas essa p**** não diz nada”.
A história oficial diz que 13 de Maio é aniversário da abolição da escravatura no Brasil. Como falar em Abolição quando os corpos negros continuam sendo alvos prioritários do genocídio?
Como falar em abolição quando o Estado segue atuando como braço armado da violência financiada pelo capital corporativo e pelas burguesias? Como falar em abolição quando as dívidas históricas do Estado com a população negra seguem apenas se acumulando?
Que esse 13 de maio também seja de reflexão sobre o privilégio branco, que lamentavelmente contribui para que toda essa dívida histórica se mantenha, pois é fundamental sairmos da zona de conforto e privilégios para nos unirmos por transformação contra toda essa barbárie. Além da ação cotidiana, é essencial a participação das manifestações que acontecem hoje por todo o país.
Nem tiros, nem chacina, nem fome, nem Covid, nem a doutrina de choque do Estado contra os povos e territórios!
Vidas negras importam, vidas faveladas importam!
Basta de militarização e violência!
Não devemos, não pagamos. Somos os povos os credores. A vida acima da dívida!
Rede Jubileu Sul Brasil
Semana Social Brasileira
São Paulo, 13 de maio de 2021.