Reflexão do Evangelho

Você também quer ser discípulo deste homem?

Leia a reflexão sobre João 8,1–19,42, texto de Itacir Brassiani.

Boa leitura!

O comércio não sabe o que fazer com a sexta-feira que os católicos chamam santa, e um clima estranho envolve as pessoas em geral, mesmo os não-cristãos. Tudo é diferente, inclusive a liturgia… Nesta sexta-feira se revela o que há de mais profundo no ser humano e de mais belo na essência de Deus. E nela o mistério do mal também atinge sua força mais terrível, a humanização de Deus atinge seu ponto mais luminoso, a entrega do ser humano a Deus se expressa em seu grau máximo. E o serviço a Deus brilha na entrega despojada e solidária a serviço do ser humano despojado de poder e de honra.

Quem faz dos próprios interesses e ambições um ídolo intocável, cedo ou tarde acaba identificando como diabólicas e ameaçadoras todas as pessoas, grupos, movimentos e entidades que pensam diferente e propõem uma ordem alternativa. Além disso, concebe estratégias para eliminá-los sem sujar as mãos, dentro dos quadros da lei, com ou sem apoio de ‘tribunais supremos’, sem se tornar “impuro”. Quantas leis – escritas nos códigos ou na alma dos povos – não passam de artifícios para disfarçar o domínio e a violência dos mais fortes sobre os mais fracos, de tentativas de impedir que estes vivam plenamente?

Conhecemos as tramas, traições e intrigas que levaram à prisão, condenação, tortura e morte de Jesus. São opções e atitudes que revelam o mistério do mal e sua força nas pessoas e estruturas. Um mal nada abstrato, pois se expressa nos costumes, nas leis, nos sistemas econômicos, nos medos, em todas as formas de ambição. Um mal que assume feições de cinismo, como quando as autoridades religiosas, tendo já decidido matar Jesus, não entram no palácio do governador para não se tornarem impuras. As ditaduras de todos os quadrantes criam leis iníquas no desesperado intento de que elas lavem suas mãos tintas de sangue e tornem leves a consciência que lhes pesa.

É o mistério inexplicável da iniquidade que faz com que as trevas da noite nos envolvam às três horas da tarde. Uma iniquidade que começa não se sabe bem onde, e se expressa na afirmação de nós mesmos às custas dos outros, no desprezo de quem é diferente, no fechamento a toda e qualquer mudança, no uso do poder cultural e religioso para abusar de menores, na indiferença para com as vítimas, enfim: na defesa da ordem que protege os dominadores. Descrevendo este dinamismo maldito que nos envolve e fere, o salmista diz:

Eis que na culpa fui gerado, no pecado minha mãe me concebeu (Sl 51,7).

Diante dos seus acusadores e algozes, Jesus não parece disposto a se debater nem se defender. Ele tem consciência de que nasceu e veio ao mundo para tornar palpável e digno de crédito o amor fiel de Deus pelas pessoas negadas em sua dignidade. Pilatos manda torturá-lo, transforma-o numa paródia de líder e o apresenta ao povo: Eis o homem! (Jo 19,6). Nisso, sem querer, ele diz a verdade, pois a verdadeira humanidade não se mostra naqueles que rasgam constituições, roubam direitos ou depredam os biomas, mas nas vítimas destes atos irracionais e nas pessoas que contra eles se levantam.

Fixemos nosso olhar em Jesus de Nazaré, este personagem que realizou em grau pleno a vocação de todo ser humano. A criatura humana não nasceu nem vive apenas a sofrer e padecer! Em Jesus descobrimos que a pessoa humana atinge sua plenitude quando não recua diante do chamado a dar a vida, quando não abre mão da solidariedade com as pessoas negadas em sua verdade e em sua dignidade. O ser humano maduro não é o ‘amigo de César’, não é quem age sem autonomia nem liberdade e quem ordena ou cede por medo… Maduro e pleno é quem, como Jesus, é capaz de se compadecer de quem é mais frágil!

A pergunta a quem procurais? (Jo 18,4) feita a Judas Iscariotes é dirigida por Jesus também a nós. O que esperamos ou buscamos na celebração da paixão de Jesus? Consolação nos sofrimentos inexplicáveis? Confirmação dos nossos interesses e projetos? Só nos é licito buscar forças para perseverar no seguimento de Jesus, amigo da humanidade. Só podem beijar o corpo torturado de Jesus aqueles que estão dispostos a renascer como uma nova família, não mais presa aos laços de sangue ou aos interesses mesquinhos, mas servidora e aberta a todos os humanos seres que querem viver e promover a vida.

Deus Pai e Mãe, prostrados e agradecidos diante do supremo gesto de amor do teu Filho, te pedimos: ensina-nos a permitir que Cristo viva em nós e a morrer para a indiferença que se globalizou e mata tantos seres humanos.  Ajuda-nos a assumir as consequências de sermos discípulos deste verdadeiro homem, e dá-nos a generosa coragem de transformar a Igreja, a sociedade e a história com o fermento da compaixão, única possibilidade de salvação da humanidade e do mundo. Faça que, aos pés da cruz, nossas comunidades e a Igreja como um todo cantem seu hino de humildade, amor e paz. Assim seja! Amém!

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