Leia a reflexão sobre João 6,1-15, texto de Rejene Lamb.
Boa leitura!
Convido a olhar o texto de João 6,1-15 na perspectiva do protagonismo da criança presente. Tomo como ponto de partida a interação entre tempo, lugar e personagens.
a) As referências ao tempo
O v.1 inicia mencionando o tempo no qual o fato descrito se passa. É um tempo “depois” que vem marcado e definido por aquilo que aconteceu anteriormente, ou seja, pelos sinais que Jesus realizava com os doentes: Jo 4.46-54 – a cura do filho de um funcionário real, um menino (v.49) cujo pai intercede por ele; e Jo 5.1-15 – a cura de um homem que estivera doente por trinta e oito anos e está sozinho, sem ninguém que o ajude (v.7).
O v. 4 traz outra referência ao tempo de Festa da Páscoa. Uma informação solta, que precisa ser analisada no contexto maior do Evangelho de João. A Páscoa é a festa comemorada para lembrar o Êxodo, a saída da terra da escravidão, o acontecimento mais importante da história do povo que narra suas experiências nos textos bíblicos. Também a observação do v.10: “pois havia naquele lugar muita grama”, é um indicativo para a estação do ano, a primavera, quando a grama é perceptível. Porém, além do aspecto temporal, consideramos esta informação importante do ponto de vista do cenário, do lugar onde os acontecimentos são vivenciados. Também o v.12 inicia com uma conjunção temporal: “quando ficaram satisfeitos” dando destaque para o tempo transcorrido entre a partilha e a saciedade das pessoas participantes. Não foi preciso comer com pressa e ninguém saiu com fome.
b) O lugar
Jesus atravessou o mar da Galileia, que é o de Tiberíades (v.1b). Jesus passara por Jerusalém (capítulo 5) e agora está de volta ao lugar onde a realidade de doença e carência mobiliza a multidão, pois esta o segue. Jesus retira-se para o monte e senta-se com seus discípulos (v.3). O monte aponta sempre para a busca de um distanciamento, mas aqui não se torna possível porque a multidão segue Jesus e não recua diante do monte. Naquele lugar havia muita grama (v.10) que é indicada como possibilidade para que o povo pudesse “tomar lugar”. Na linguagem dos Evangelhos, o verbo “tomar lugar” ocorre em Mt 15.35; Mc 6.40; Mc 8.6; (narrativas paralelas a João 6.1-5) e em Lc 11.37; 17.7; 22.14; Jo 6.10; 13.12. Refere-se sempre ao ocupar lugar em uma mesa, reclinar-se à mesa; em Lc 14.10 se refere ao lugar ocupado por alguém em uma festa e em Jo 13.25 e 21.20 ao reclinar-se sobre o peito de Jesus. Predominam os usos deste verbo para indicar mais do que um simples sentar, pois indica explicitamente o ato de tomar um lugar para participar de uma refeição.
c) As pessoas que interagem na narrativa
Jesus é claramente aquele em torno do qual tudo gravita. Há uma multidão que o seguia. No v.5 fica claro que Jesus está acompanhado por seus discípulos a quem ele se dirige. Nominalmente são mencionados, Felipe e André, irmãos de Simão Pedro. No v.9 uma criança é mencionada e logo depois no v.10 é dito que os homens eram cinco mil. No caso, não é dito que mulheres e crianças não são contadas, como se diz explicitamente no Evangelho de Mateus em 14.21 e 15.38, porém, fica claro que elas deixam de ser contabilizadas por usar o termo andrés (varões) ao falar dos cinco mil que tomaram lugar. Anteriormente foi falado sobre a criança, portanto ela estava lá e interage com os discípulos e certamente também com Jesus.
O termo utilizado em João 6.9 para referir-se ao menino é paidarion. Há alguns comentários exegéticos que traduzem este termo como rapaz ou escravo. Porém, predominantemente é preferida a utilização da palavra “menino”. O dicionário do Novo Testamento de Walter Bauer traz como primeiro significado: “menininho, o menino, a criança, também do sexo feminino”. Considerando os diversos estudos sobre os termos usados para falar de crianças na Bíblia, pode-se apenas afirmar, pelo menos como uma possibilidade bastante provável, que o termo paidarion de João 6.9 se refere a uma criança, escrava ou livre, menino ou menina, legalmente ainda sob a tutela de um adulto. Considerando que paidarion é um diminutivo, a tradução mais próxima é: menino ou menina e por isto optamos em falar sempre em criança.
Esta criança é apresentada como paradigma e como quem tem os meios para fazer acontecer a partilha. Ela não fala, não faz perguntas, não contesta, apenas disponibiliza os recursos e os meios de partilha. A memória de sua ação chega ate nós apenas pela sua presença física, seu corpo que não pode ser invisibilizado, ignorado. No contexto do Evangelho de João é uma presença incômoda porque este é um Evangelho diferente dos sinóticos, que trazem muito mais narrativas sobre crianças. Esta menção basta para nos perguntar sobre a maneira como percebemos as crianças em nosso meio.
A busca de uma hermenêutica na perspectiva das crianças nos incomoda porque exige que nós mesmos nos deixemos perguntar como nós nos percebemos em relação a elas. Não podemos dizer como as vemos e percebemos sem revelar nossos próprios conceitos e percepções. A criança tem em suas mãos pães e peixes. Jesus recebe esses alimentos e são mencionados cinco mil homens para comê-los. Mulheres e crianças não contam, mas esse menino denuncia a presença de crianças em meio à multidão. Na construção desta narrativa, também Jesus não é descrito como alguém que dá atenção ou valoriza a criança. Ele apenas faz uso do que a criança tem para fazer os sinais e fazer a multidão reconhecer nele o profeta que viria ao mundo. Porém, ao não ignorar aquilo que a criança tem, como a observação do discípulo insinua, Jesus valoriza a sua presença. E isto acontece explicitamente em outras narrativas no próprio Evangelho de João: “Quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus. Precisa tornar a ver como criança” (3.3-7).
Em situação de carência, com a presença de Jesus é anunciada a vida em abundância. A presença da criança é percebida pelo que ela oferece para partilhar, mas o protagonista da oferta é André, um dos discípulos de Jesus. A partilha em João 6 acontece a partir daquilo que a comunidade tem a disposição e não daquilo que é uma concessão por alguém de fora. E, nesse caso, são cinco pães de cevada e dois peixes secos, que estão em posse de uma criança. A relação que se estabelece é de uma economia solidária.
É Rubem Alves quem chama a nossa atenção para este aspecto específico no Evangelho de João, de ver o Reino de Deus. Conforme este autor, “são as crianças que veem as coisas – porque elas as veem sempre pela primeira vez com espanto, com assombro de que elas sejam do jeito que são. Os adultos, de tanto vê-las, já não as veem mais. As coisas – as mais maravilhosas – ficam banais.” Os adultos pensam que o maior e o mais caro são o melhor. Pensam que a alegria e os deuses vêm empacotados em embrulhos grandes. Por exemplo: quando falam em Deus, pensam logo numa coisa grande, muito grande, terrível, do tamanho do universo, e ficam falando em coisa que o pensamento não entende, como tempo de bilhões e anos e distâncias de anos luz. Não sabem que a alegria, o maravilhoso, o divino estão ali pertinho, ao alcance da mão.
Divina é uma gota de orvalho, uma amora roxa, uma cambalhota de tiziu, um raio de sol numa teia de aranha, a cor de uma joaninha, um bombom, uma bolinha de gude, um amigo, uma acertada de bilboquê: coisas pequenas, sem preço. Como você. Você é pequenininha e, ao preço de mercado, não deve valer muito. Mas você é mais maravilhosa que o universo inteiro. Porque você tem o poder de dar alegria e de sentir alegria. O universo não tem. Deus é alegria. Uma criança é alegria. Deus e uma criança têm isso em comum: ambos sabem que o universo é uma caixa de brinquedos.
Deus vê o mundo com olhos de criança. Está sempre à procura de companheiros para brincar. Esta é uma perspectiva diferenciada em relação às crianças. Interpela para perceber as crianças como aquelas que têm algo a nos ensinar, a mostrar possibilidades também lá onde, como adultos, já não as vemos. Convida para olhar com curiosidade, admiração, vontade de descobrir novidades, buscar a superação daquilo que causa tristeza, dor, angústia e morte. Convida para questionar a lógica que vê a solução no dinheiro e na compra que predomina no sistema do mundo das pessoas adultas Esta perspectiva da importância do ver como uma capacidade ímpar das crianças nos levou a perceber a importância do verbo ver em João 6.1-15. Em João 6.5 Jesus vê a multidão que vem até ele, e este ver o faz perguntar. O povo quer ver sinais e Jesus vê a multidão. André, o discípulo, vê a criança com os pães e os peixes, mas não percebe nele a solução. Somente o olhar e a ação de Jesus trazem a solução. E a multidão vê o sinal, mas ainda não percebe a projeto maior vinculado a ele: quer proclamá-lo rei, assim ele precisa retirar-se sozinho para o monte (6.15).
Podemos ignorar a presença da criança e o fato de ser ela quem tem os alimentos e os dispõe para a partilha. Mas, podemos também nos deixar seduzir e brincar com a possibilidade de ela trazer a proposta da disponibilização daquilo que cada qual traz e tem. Como criança estava entre a multidão que seguiu Jesus, o ouviu e tinha algo a partilhar. Para chegar até o mestre, sua oferta vem intermediada por um adulto. Mas, na redação do texto a sua presença não foi ignorada, mesmo não sendo contabilizada, conforme os outros relatos enfatizam. No seu silencio fala e deixa um sinal. Na construção das narrativas dos outros Evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas) esta presença silenciosa foi ignorada, não é mencionada, mesmo que não totalmente, porque as crianças estão com as mulheres entre os que não contam. Ao dizer que não contam, faz-se lembrar da sua presença e possibilita a pergunta pelas relações estabelecidas entre elas e os adultos presentes.
Na narrativa do Evangelho de João a preocupação com a fome da multidão reunida é de Jesus (v.5). A lógica na qual os discípulos se movem é a da compra. “Onde compraremos pães para que comam?” A resposta dada por Filipe, não é resposta para a pergunta feita. Ela reflete a necessidade de uma grande quantia de dinheiro para comprar o pão necessário. E, mesmo assim, nesta lógica este não seria o suficiente. Só a aceitação de uma oferta gratuita e a partilha fazem sobrar e possibilitam guardar, para que nada se perca.