Reflexão do Evangelho

O encontro profético de Maria e Isabel – Lucas 1, 39-56

O contexto histórico

Maria ou “Miriam”, como era conhecida na Galileia, fazia parte de um povo colonizado pelo Império Romano. Em razão de sua juventude, sua origem familiar pobre da classe camponesa, sua condição feminina e sua ascendência judia, não tinha posição social.

A Galileia tinha sido anexada ao vasto Império Romano que se expandiu pela conquista. Por sua vez, Nazaré era uma pequena aldeia agrícola da Galileia, com uma população de cerca de 300 a 500 habitantes. No período romano primitivo, não havia em Nazaré ruas pavimentadas, edifícios públicos, inscrições públicas, nenhum mármore, mosaicos ou afrescos. Foi nessa cidade que Maria passou a maior parte de sua vida e criou seus filhos.

Segundo os evangelhos, Maria era esposa de um tekton, palavra grega que designava um carpinteiro, um pedreiro ou a combinação dessas habilidades. Maria, por conseguinte, fazia parte da classe artesã, subgrupo da classe socialmente mais baixa formada por camponeses que trabalhavam a terra, arrendatários e artesãos. As famílias dessas classes populares produziam e processavam praticamente toda comida, a roupa e outros instrumentos necessários à sobrevivência. Amostras desse trabalho doméstico realizado por Maria apareceriam nas parábolas de Jesus sobre o fermento colocado na farinha (Lc 13, 20-21), o remendo em roupa velha com pano novo (Lc 5, 36) e o vinho novo em odres velhos (Lc 5, 37-39).

Além da pobreza, Miriam de Nazaré experimentou a opressão sob os sistemas de dominação do Império Romano, do governo da Galileia e do Templo Judaico. Durante a ocupação romana, galileus como Miriam de Nazaré eram triplamente taxados. Tinham de pagar um tributo ao imperador romano, um imposto para o rei-cliente judeu da Galileia, que governava por procuração de Roma, e o dízimo tradicional para o Templo de Jerusalém.

Ademais, Maria e Jesus nasceram durante o reinado de Herodes, o Grande, Rei da Palestina que reinou de 37 AEC a 4 EC. Quando ele morreu, explodiu uma revolta popular e as autoridades romanas reprimiram a revolta popular com brutalidade, queimando aldeias e vendendo os habitantes para a escravidão. O filho de Herodes, Herodes Antipas coletou ainda mais impostos para construir uma nova capital em Tibério e reconstruir a antiga capital Séforis da Galileia, há poucos quilômetros de Nazaré. A exibição de riqueza e poder dessas cidades ampliou a desigualdade social entre os camponeses e as classes altas.

Segundo o evangelho da comunidade lucana, Maria e José faziam parte de uma família praticante, pontuada pelo ritmo da oração cotidiana, a observância semanal do sábado, as festas e peregrinações sazonais ao Templo de Jerusalém. É nesse contexto que Maria discerne o chamado de Deus e se compromete corajosa e livremente a colaborar com um ousado plano de salvação. Segundo a narrativa lucana, Maria se apresenta como “serva de Deus”, assim como o costume veterotestamentário de designar grandes figuras da história da salvação como “servos de Javé”: Abraão (Sl 105, 42), Moisés (2 Rs 18,12), Josué (Jz 2,8) e os profetas (Am 3,7).

O encontro profético

A tradição da comunidade lucana retrata Maria como uma mulher de ação que parte imediata e apressadamente, numa viagem profética, para visitar a parenta Isabel. É a única passagem em todos os evangelhos canônicos em que duas mulheres ocupam o centro da cena. Maria saúda

Isabel. A criança estremece no ventre de Isabel que fica cheia do Espírito Santo, sendo a primeira pessoa no evangelho lucano a confessar Jesus como ”meu Senhor” ao proclamar profeticamente que a “mãe do meu Senhor” foi visitá-la, chamando Maria de “Bendita entre as mulheres”. Contra toda esperança e expectativa, as duas mulheres, a virgem e a estéril, abriram-se ao Deus da vida. Ambas carregam em seus corpos a esperança de libertação e justiça que profeticamente proclamam.

O silêncio do sacerdote Zacarias, esposo de Isabel, contrasta com o discurso inspirado pelo Espírito Santo das duas mulheres. O sacerdote Zacarias está mudo há seis meses pois, ao contrário de Maria, não acreditou nas palavras do anjo Gabriel. Maria, repleta de vida, saúda primeiro Isabel, contrariando o costume ao ignorar Zacarias, o chefe da casa. A saudação não envolve o sacerdote que, fechado à boa notícia e refratário à esperança no, para ele, “inconcebível” Reino de Deus, não tem nada a dizer.

O Cântico de Maria e Isabel

A tradição da comunidade lucana faz Maria entoar um cântico dos oprimidos que expressa a preocupação dela e de Isabel pela Israel de seu tempo, louvando as coisas que Deus fez pela comunidade oprimida de Israel. É a mais longa passagem do novo testamento colocada nos lábios de uma mulher.

O Magnificat é um poema “antológico” que utiliza, de maneira quase contínua, elementos tirados dos textos canônicos da Bíblia hebraica, sobretudo dos Salmos e de certos profetas. Segundo essa composição, a ação criadora e libertadora de Javé, no seu pobre e humilhado servo Israel, está presente na pobre serva Maria.

O Magnificat é um testemunho da “espiritualidade dos pobres” que louvam e se alegram com o Deus Salvador, pois este viu a “humilhação de sua serva” (Lc 1, 48), assim como havia visto “a miséria de seu povo” escravizado no Egito (Ex 3, 7-10). E assim como no Egito (Ex 2, 24), “socorreu Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia para com Abraão e seus descendentes” (Lc 1, 54).

Há ainda evidentes alusões a outros textos da Bíblia hebraica (Sl 89, 11; Sl 107, 9; Eclo 10,14; a Jo 12, 19; Ez 21, 31), recorrendo a uma tradição fortemente antimonárquica e anticlerical. Em Maria, irrompe um cântico como os cânticos das profetizas Míriam (Ex 15, 20-21), Débora (Jz 5, 1-31), Ana (1 Sm 2, 1-10) e Judith (Jt 16, 1-17). O coral resultante das vozes dessas mulheres estabelece um programa definitivo que descreve a inversão das estruturas injustas da sociedade, depondo os poderosos, exaltando os humildes, os pobres e marginalizados, e cumulando de bens os famintos (Lc 1, 52-53).

A esperança ainda está viva no meio de nós

O Magnificat permanece hoje como mensagem desafiadora em meio aos esforços de comunidades e movimentos populares diante dos horrores do atual sistema econômico e geopolítico capitalista em lugares como a Palestina, nos territórios pobres e periféricos dos grandes centros urbanos, na extrema concentração de riqueza nas mãos de poucos, nas invasões de terras de povos indígenas, nos imensos latifúndios, na destruição dos ecossistemas, no martírio das lideranças populares que se opõem às estruturas injustas, no fundamentalismo

e moralismo religioso que justifica essa realidade de opressão, exploração e injustiça. Em meio a tudo isso, o Espírito geme com o grito dos oprimidos e a voz profética de Maria precisa voltar a ser ouvida e a inspirar a esperança (projeto) de outro mundo.

“Quando começarem a acontecer essas coisas, levantem-se e ergam a cabeça, porque se

aproxima a vossa libertação” (Lc 21, 28).

Ronaldo Sales Jr
CEBI/Paraíba

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