Por Cláudio Márcio R. da Silva
“Tocamos flauta, e não dançastes;
cantamos lamentações, e não chorastes”(Mt 11:17)
O território do Recôncavo da Bahia é composto por muitas filarmônicas centenárias. Em Muritiba, por exemplo, temos a Lira Popular Muritibana e a 5 de Março onde muitas gerações passaram por essas instituições com um ensino gratuito e depois tornaram-se excelentes músicos em bandas baianas com destaque nacional, nos quartéis militares e, não menos, em festividades cívicas-religiosas-populares proporcionando alegria e encantamento para muitos ouvintes nos coretos das praças da cidade.
Desta maneira, praça e coreto eram espaços que revelavam modos de vida sobretudo em seus aspectos político-religioso-cultural, isto é, era o lugar de comunicação de um grupo específico que fazia deles um palanque-púlpito. A praça era o ambiente da diversidade, do lazer, dos namorados, mas, o coreto não. Entretanto, através das filarmônicas, grupos sociais subalternizados pela cor e ou condições econômicas tinham acesso ao coreto. Sua música era sua voz em busca de inserção numa sociedade extremamente excludente e desigual.
A narrativa bíblica para o Calendário Litúrgico Reformado no 5º Domingo após a festa de Pentecostes sinaliza o evangelho convidando para libertação de todas as escravidões. No capítulo 11 de Mateus encontramos uma chave de leitura: Jesus é mesmo o Messias? Segundo Carlos Luiz Ulrich “Jesus não aponta para sua pessoa, mas para sua prática, aquilo que os discípulos estão vendo e ouvindo: ‘os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho’ (11.5-6). Aos pobres e desprezados é anunciada a libertação em palavras e ações. Em Jesus Cristo se concretiza o tempo da espera (kairós) da libertação”.
Ora, a praça (lugar de desafio e disputas) para além da percepção que temos hoje de encontro, celebração, socializações e ludicidades, era na Idade Antiga, local de discussão política e social da cidade como sinaliza o Rev. Cláudio Soares no seu Podcast Subsídio Exegético. Entretanto, naquele momento, o paradigma societário sinalizado por Jesus também apresentava insensibilidades, indiferenças de pessoas que não escutavam as músicas tocadas pelas crianças, sejam elas de dor ou alegria!
Incrível como não aprendemos ainda a força e a beleza das crianças. Delas é o Reino de Deus! Vejamos: “Depois disso, alguns levaram crianças para que Jesus tocasse nelas. Mas os discípulos as repreendiam. Vendo isso, Jesus ficou zangado e disse: “Deixem as crianças virem a mim. Não lhes proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas. Eu garanto a vocês: quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele. Então, Jesus abraçou as crianças e abençoou-as, pondo a mão sobre elas” (Mc 10,13-16). Como sugere o poeta Gonzaguinha com elas devemos compreender que “a vida é bonita, é bonita e é bonita”.
Ora, o problema da indiferença é que homens e mulheres parecem ter ouvidos e não ouvem. Como apontou a banda Oficina G3, a indiferença é como “vidros fechados, gestos mudos do outro lado”. A quem interessa essa postura? Pode um cristão em busca de uma espiritualidade autêntica viver desta maneira? Se temos a fé de Jesus de Nazaré devemos nos compadecer daqueles e daquelas emudecidos do caminho. O que dizem? A quem dizem? Como dizem? O Evangelho do camarada de Nazaré acolhe excluídos que escutam no som da música dEle palavras como: “vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt11:28-30).
Suspeito que devemos ter muito cuidado para que nossa religiosidade não atrapalhe nossa espiritualidade, ou seja, por vezes agimos como “guardiões da fé” e impedimos que tantos e tantas que podem e querem chegar em nossas comunidades em nome de tradições que podem e devem ser revisitadas. Parece que às vezes somos aqueles que não dançam e reclamam dos que tem “suingue no corpo”.
Em nossa liturgia falta corpo dançante. Faltam expressões culturais que constituem nossas identidades múltiplas, ou seja, queremos o som dos sinos, mas onde estão os instrumentos percussivos? De fato, o que não falta em muitas comunidades religiosas é a exclusão, o fundamentalismo e os falsos moralistas que julgam o diferente e impedem sua possibilidade de existir.
Por outro lado, existem comunidades religiosas que apontam para outros rumos. No contexto pandêmico COVID-19, em especial, muitas redes de apoio e cuidado mútuo estão sendo vislumbradas nessas instituições, onde a face amorosa de Deus é revelada. Os fenômenos religiosos e os humanos são assim mesmo, cheios de ambivalências e complexidades.
Nossos dias têm sido demasiadamente difíceis, pois, já temos mais de 60 mil famílias enlutadas em solo brasileiro e, como aponta Martinho Lutero, “os sinos tocam de modo muito diferente do normal quando morre um amigo”. Como abaliza o salmista: “choro dia e noite, e as lágrimas são o meu alimento”, contudo, somos teimosos na reconstrução de sonhos, mesmo com medos e incertezas, sabemos também que “o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã” (Sl 30:5).
Encerro essa prédica parafraseando do Rubem Alves ao dizer que ao som da flauta tocada pelos pastores as ovelhas sempre estarão protegidas. Os lobos sempre estarão por perto, mas, a despeito deles, somos convidados a esperançar e acreditar na beleza e na libertação. Com efeito, poetas, artistas, educadores, líderes religiosos, ativistas sociais têm tocado a música junto com as crianças nas cirandas das praças. Não escutas o som? Que pena, pois, “aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música” (Friedrich Nietzsche).
Reverendo da IPU de Muritiba-BA. Prédica feita em 05-07-2020 na IPU de Itapagipe-BA baseado em Mateus 11.16-19,25-30. (5º DOMINGO APÓS PENTECOSTES).