Confira o comentário do evangelho escrito por Carlos Mesters, Francisco Orofino e Mercedes Lopes. O texto fala sobre João 19.17-30.
Boa leitura!
“Tudo está consumado!” (João 19.17-30)
Hoje vamos meditar sobre a morte de Jesus na cruz. O processo de morte e ressurreição faz parte do ciclo da vida e da natureza. Tudo morre e renasce. Faz parte também da caminhada. Um ato de amor é doação de si em benefício da vida do outro. Muitas vezes, com muita dor e sofrimento. Mas a cruz não faz parte da vida. A cruz era morte cruel, imposta pelo sistema da época a todos aqueles que a ele se opunham ou que eram perigosos para o sistema opressor. Num mundo organizado com egoísmo, o amor só sobrevive crucificado, pois ele é uma acusação contra o sistema e o subverte. O sistema tem medo do amor. Como diz o canto de Zé Vicente: “Soldados tristes, calados, com olhos esbugalhados, vendo avançar o amor!” Jesus soube integrar e assumir a morte em sua vida como parte da sua missão. Ao lado dele sobraram umas poucas pessoas que o apoiavam.
O texto nos descreve os últimos momentos da vida de Jesus, desde a saída da casa de Pilatos até a morte na cruz.
1. Situando
1. Todos os quatro evangelhos descrevem a paixão, morte e ressurreição de Jesus, mas cada um o faz do seu jeito. Em Mateus, Jesus realiza e encerra o Antigo Testamento e inicia um novo período (Mt 27,50-54). Em Marcos, Jesus revela sua divindade aos pagãos (Mc 15,37-39). Em Lucas, Jesus é o justo que morre conforme o ideal descrito no livro de Sabedoria (Lc 23,44-48). Em João, como veremos, Jesus é o Rei que, do alto do trono da sua cruz, triunfa sobre o poder do mal. 2.
A descrição da paixão de Jesus, do começo ao fim, está permeada de evocações do AT. Algumas são explícitas, indicadas pelo próprio evangelista. Outras, a maioria, são implícitas. Só as descobre quem conhece de memória o AT. Este uso do AT tem um significado profundo, que será esclarecido no Alargando.
2. Comentando
1. João 19,17-18: Via-sacra e crucifixão
Os condenados à morte de cruz deviam eles mesmos carregar a cruz até o lugar da crucificação. A morte de cruz era o castigo terrível que o Império Romano reservava para os que se levantavam contra o poder do imperador de Roma. Era um suplício exemplar, isto é, servia para meter medo nos outros. Jesus é crucificado com dois outros num lugar que o povo chamava de caveira (Calvário ou Gólgota). Era um pequeno morro, perto da porta da cidade, onde eram colocadas as cruzes dos condenados, para que todos os passantes pudessem vê-los.
2. João 19,19-22: O letreiro com a sentença
Um letreiro pregado na cruz indicava o motivo da condenação. Pilatos mandou escrever: “Jesus de Nazaré, rei dos judeus”, ou seja, o motivo era subversão, pois, para os romanos, quem se faz rei sem licença de Roma é um subversivo. O letreiro estava escrito nas três línguas que se usavam: latim, grego e hebraico. Os sacerdotes queriam corrigir o texto e diziam a Pilatos: “Ele não era rei, mas dizia que era rei.” Desta vez, Pilatos ficou firme e não mudou.
3. João 19,23-24: Os soldados roubaram as vestes de Jesus
João nada informa sobre a maneira como Jesus foi flagelado, nem sobre a via-sacra e tantos outros aspectos da paixão. Mas ele insiste no detalhe de que os soldados, além de repartir entre si as vestes, sortearam a túnica, tecida de uma peça só. É que neste detalhe se realizava a profecia do Salmo 22 que diz: “Repartem entre si minhas vestes e sobre a minha túnica tiram sorte” (Sl 22,19). Assim ficava mais claro para os leitores e as leitoras que Jesus era o messias que realizava as profecias.
4. João 19,25-27: As mulheres e o Discípulo Amado junto à cruz
Perto da cruz, estavam três ou quatro mulheres. Entre elas a mãe de Jesus. Jesus entregou o Discípulo Amado à sua mãe, e entregou sua mãe ao Discípulo Amado. Este episódio, mencionado somente pelo Evangelho de João, tem um valor simbólico muito profundo. A mãe de Jesus representa o AT. Representa também Eva, a mãe de todos os viventes. O Discípulo Amado representa o NT, a comunidade que nasceu ao redor de Jesus. Representa também a nova humanidade que se forma a partir da vivência do Evangelho. Os dois se complementam. Veja o Alargando do Círculo 3: “A mãe de Jesus no Evangelho de João”.
5. João 19,28-30: Jesus entrega o espírito e morre
No Evangelho de João, a descrição da morte de Jesus é feita com muita solenidade. Pois quem morre é o Senhor da vida, consciente da missão que tinha recebido do Pai. João evoca as palavras do início do Livro da Glorificação: “Sabendo Jesus que estava tudo consumado” (cf Jo 13,1). Jesus tinha vindo da parte do Pai e agora, realizada a missão que lhe tinha sido entregue, volta para junto do Pai.
E para cumprir a Escritura até o último detalhe, e nada ficar sem cumprimento, ele diz: “Tenho sede!” Isso se refere ao salmo onde se diz: “Na minha sede me deram vinagre para beber” (Sl 69,22). Um soldado ensopou uma esponja no vinagre, encostou na boca de Jesus, e ele bebeu. Assim, após ter realizado tudo como o Pai queria, Jesus, ele mesmo, determina a hora da partida. Inclinou a cabeça e entregou o Espírito. Aqui termina a antiga criação e nasce a nova. “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (12,24).
3. Alargando
O uso do Antigo Testamento na descrição da paixão e morte de Jesus
Nestes poucos versículos da descrição da morte de Jesus (Jo 19,17-37), aparecem 12 evocações do Antigo Testamento. Eis a lista:
Evangelho de João
- 1) “Jesus saiu carregando a sua cruz” (Jo 19, 17).
- “Crucificaram com ele dois outros, um de cada lado, Jesus no meio” (Jo 19,18).
- “Jesus de Nazaré, Rei dos judeus” (Jo 19, 19).
- Os soldados dividiram as vestes e lançaram a sorte sobre a túnica (Jo 19,23-24).
- “Mulher, eis aí o teu filho!” e “Filho, eis aí tua mãe!” (Jo 19, 26-27).
- “Jesus diz: Tenho sede!” (Jo 19,28) e lhe deram vinagre para beber.
- Jesus morre dizendo: “Tudo está consumado” (Jo 19,30).
- “Inclinando a cabeça entregou o Espírito” (Jo 19,30).
- A preocupação de enterrar os crucificados antes do início do sábado (Jo 19,31).
- “Do seu lado saíram sangue e água” (Jo 19,34).
- “Não quebraram as pernas de Jesus” (Jo 19, 33).
- “Traspassou-lhe o lado com a lança” (Jo 19, 34).
Antigo Testamento
- Evoca Isaque carregando a lenha do seu próprio sacrifício (Gn 22,6).
- Evoca a profecia do servo sofredor que foi “contado entre os criminosos” (Is 53,12).
- Evoca a profecia de Isaías que diz: “O teu Deus reina!” (Is 52,7).
- O próprio evangelho diz que isso aconteceu para que se cumprisse a Escritura (Sl 22,19).
- Evoca a nova Eva, mãe de todos os viventes (Gn 3,20), a nova humanidade que nasce.
- Evoca o salmo: “Na minha sede me deram vinagre para beber!” (Sl 69,22).
- Evoca o salmo: “Vim para fazer a tua vontade” (Sl 40,8-9). Jesus cumpriu a vontade de Deus.
- Evoca o salmo: “Em tuas mãos entrego o meu espírito!” (Sl 31,6).
- Evoca a lei: um crucificado não pode permanecer na cruz durante a noite (Dt 21,22-23).
- Evoca o sangue da aliança (Ex 24,8) e a água que sai do lado do templo (Ez 47,1-12).
- Evoca o rito do cordeiro pascal: “Nenhum osso lhe será quebrado” (Ex 12,46; Sl 34,21).
- Evoca a profecia: “Olharão para aquele que transpassaram” (Zc 12,10; Is 53,7).
Não existe qualquer ordem nem esquema neste uso do AT. Na sua maior parte, não se trata de citações explícitas, mas de evocações que só funcionam num ambiente onde os leitores e as leitoras conhecem o AT de memória. É uma releitura do AT feita a partir da experiência da ressurreição. Para nós que conhecemos pouco o AT, estas citações não têm muito efeito. Mas para as comunidades do Discípulo Amado, que conheciam o AT, esta maneira de descrever a paixão e morte de Jesus por meio de evocações do AT tornava a paixão transparente. Fazia perceber como a força da vida e da ressurreição já estava presente e atuante na hora da própria morte. Usando o AT, João tirou um raio-X da morte e a transformou em fonte de vida e de luz. O desafio para nós é fazermos a mesma leitura transparente da nossa vida e da nossa história.
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