Por Itaci Brassiani
O batismo faz parte da tradição cultural do nosso povo. O sentido original do batismo perde-se na inconsciência, mas ele esconde um valor precioso nem sempre seja explicitado. Mais que um rito de passagem, o batismo é um rito de pertença a um povo, a uma causa. Numa sociedade que desarticula os vínculos e fragmenta a vida dos mais pobres, o batismo ainda representa a oportunidade de estabelecer algumas alianças de sobrevivência com vizinhos, compadres e comadres. E não deixa de ser um ato de fé na força da vida, sempre frágil e sujeita a reviravoltas.
Lucas registra que ‘todo povo foi batizado’, mas não oferece nenhuma descrição ou detalhe de um batismo especial de Jesus, nem informações sobre sua origem e identidade. Em apenas uma frase e dois versículos, Lucas dá por terminada a descrição do batismo de Jesus! O tempo no qual ocorre não é propriamente especial em relação ao batismo dos demais habitantes da região da Judéia que confessam seus pecados. O tempo e o lugar são os mesmos que reúnem os pecadores, e Jesus entra na fila, anonimamente. Ninguém vê nada de especial durante seu batismo, nem mesmo João Batista.
Depois do batismo, estando Jesus recolhido em oração, o céu se abre e o Espírito Santo desce sobre ele em forma de pomba. Do céu aberto ressoa uma voz: “Tu és meu filho amado; em ti encontro o meu agrado.” E nada mais. Nenhuma reação. Nenhuma aclamação. Tudo transcorre como se fosse um fato normal, tanto que logo Jesus segue sozinho para o deserto, firme na busca de luzes para entender melhor sua identidade e sua missão. Tanto que sentimos a necessidade de continuar perguntando: o que o batismo praticado por João significava mesmo, e como Jesus o teria vivido?
O batismo proposto por João assinalava o cancelamento dos débitos do povo frente ao judaísmo, desobrigava o fiel frente às estruturas do sistema judaico, representado pelos sacerdotes e encarnado no templo. Expressava também o desejo de endireitar as estradas, de preparar os caminhos para o encontro com Deus, e a expectativa de que algo novo estava por acontecer. No batismo, Jesus entende que é o filho querido e ungido que se opõe aos poderosos da terra (cf. Sl 2), o servo fiel que tira o pecado do mundo (cf. Is 42,1-7), o broto promissor na terra seca (cf. Is 11,1-2).
No batismo, Jesus também cresce na consciência de que uma nova criação está em gestação. Trata-se de um processo de alargamento da consciência, que antecede o próprio batismo e prossegue depois dele. Ao participar de um rito que proclama o cancelamento dos pecados, que torna o povo livre frente às leis discriminadoras, Jesus se descobre uma pessoa livre, uma espécie de ‘fora da lei’ do sistema judaico. Sua lealdade não é mais com o sistema religioso judaico ou com um ‘capitão’ prepotente, mas com Deus Pai. Não há mais judeu ou grego, homem ou mulher, escravo ou livre.
E é por aqui que começa a nova criação, simbolizada pelo céu aberto e pela descida da pomba. Os doutores da lei e os sacerdotes pecavam porque cumpriam a lei nas suas minúcias e esqueciam a compaixão e a misericórdia. A nova sociedade e a nova criação começam exatamente com a renúncia a esta velha ordem, opressora e corruptora. Jesus enfrentará este sistema nas tentações que virão em seguida e durante toda a sua vida, e pagará um alto preço por tamanha ousadia.
No batismo de Jesus, o Espírito que desce ‘em forma corpórea, como pomba’, entra em cena para recordando que ele pairava sobre as águas e presidiu a primeira criação. Ele se faz presente em Jesus e na comunidade, para que façamos a passagem da imaturidade que limita e da escravidão que amedronta para a maioridade e a liberdade de filhos e filhas, nos/as quais o próprio Deus se compraz. Ele suscita testemunhas e sustenta a prática do bem e da justiça, tanto em Jesus como nos discípulos. Da força do Espírito emerge um povo livre e maduro, que vive no mundo para fazer o bem.
Jesus de Nazaré, filho amado do Pai, visita peregrina e benfazeja, irmão querido da humanidade! No dia em que recordamos o teu batismo, pedimos por tua Igreja: que ela não seja leal senão a ti, e não procure agradar senão ao teu e nosso Pai. Sendo uma comunhão articulada de batizados, que ela se revele um ensaio geral da nova ordem, na qual as desigualdades são eliminadas e a dignidade de cada criatura é afirmada sem ‘mas’ nem ‘porém’. E que seus filhos e filhas vivamos para fazer o bem, sem medo de ‘capitães do mato’ ou capitães da caserna! Assim seja! Amém!