Eu vos digo que não: uma reflexão a partir de Lc 13,1-9
Leia a reflexão sobre Lucas 13,1-9, texto de Maria Nivaneide de Abreu Lima
Chegamos ao 3º Domingo da Quaresma atravessados por notícias de guerras, as que ganham espaço nas grandes mídias e aquelas que sequer são comentadas, do aumento exorbitante dos preços dos produtos da cesta básica, de uma pandemia ainda em curso, de injustiças cometidas e de impunidade para aqueles que as cometem, de desigualdades, violências e cancelamentos, de racismos, de feminicídios, de LGBTfobia, de aumento da população em situação de rua e do número de pessoas vivendo em situação de miséria e tantas outras. A maneira como essa realidade nos toca depende de muitos fatores, inclusive e muito provavelmente de modo primordial, de nossa experiência de fé.
Neste domingo, somos chamados à reflexão a partir do Evangelho segundo Lucas, capítulo 13, versículos 1 a 9. Jesus e seus discípulos estão a caminho de Jerusalém e nós, leitores de Lucas, acompanhamos seus passos, tomamos conhecimento dos acontecimentos do caminho e dos ensinamentos de Jesus a seus discípulos e às multidões, na longa narrativa que começa em Lc 9,51 e termina em Lc 19,28.
Não sabemos bem o lugar específico onde ocorreram os episódios narrados no evangelho de hoje. Tudo o que sabemos é que enquanto Jesus falava às multidões (Lc 8,54) – imaginamos que seus discípulos também estivessem por ali –, algumas pessoas chegam com a notícia de que alguns galileus haviam sido mortos, tendo seu sangue misturado ao dos sacrifícios que ofereciam, por ordem de Pilatos.
O evangelista resume de tal forma o teor da notícia, que tudo com que contamos é uma manchete, não sabemos os detalhes, mas sabemos que não se tratava de um acontecimento qualquer nem de um faz de conta: tratava-se de uma violência, do assassinato de um grupo de pessoas enquanto realizavam sua liturgia. Além disso, não se pode deixar de levar em conta que os que foram assassinados, como Jesus, eram galileus, palavra que designava os nascidos na Galileia e os revolucionários, os que de alguma forma perturbarvam a (des) ordem instaurada naquela região pelo dominação romana (como Judas, o Galileu, mencionado em At 5,37), o que nos leva a desconfiar se o que aquelas pessoas traziam era de fato uma notícia ou se era uma advertência a Jesus que caminhava para Jerusalém.
Jesus, retomando a palavra, dá a conhecer a opinião de seus inerlocutores: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa?” (Lc 13,2), e, em seguida, apresenta seu próprio parecer sobre os acontecimentos. Jesus nega qualquer relação entre a morte dos galileus e as supostas faltas por eles cometidas, e, sobretudo, nega qualquer relação entre essa morte violenta e um castigo de Deus, mas parece aproveitar bem a ocasião para fazer com que aqueles que lhe traziam tal notícia confrontassem a si mesmos, encarassem suas próprias faltas e transgressões.
Em seguida, para que ficasse bem claro, Jesus toma outro exemplo, outras vítimas, outra tragédia, dessa vez não se mencionava a Galileia, mas dezoito pessoas que morreram com a queda da torre de Siloé. Uma vez mais, Jesus nega que sua morte seria uma punição e convida seus interlocutores ao arrependimento. Portanto, a primeira parte do evangelho de hoje pode ser pensada a partir da seguinte estrutura: um incidente expõe um problema – uma questão a ser pensada, refletida e até desconstruída – e é seguido de um dito de Jesus, um ensinamento que ajuda nessa reflexão.
A segunda parte do evangelho deste domingo consiste em uma parábola sobre uma figueira que não frutificava, considerada pelo dono da vinha como uma tremenda perda de espaço já que, por três anos seguidos, o homem não encontrava nela fruto algum e, por isso, ordena que seja cortada. Surpreendentemente, o vinhateiro insiste com o dono da vinha, pede que lhe dê mais um tempo para que possa fazer pela figueira tudo o que estiver ao seu alcance a fim de que esta venha a dar frutos: “Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás” (Lc 13,9).
Na parábola, as atitudes de dois personagens são postas lado a lado: a do proprietário, que nos parece incisiva e definitiva, e a do empregado, que evoca uma ideia de paciência, condescendência, está munida de interesse, esforços e auto implicação. A imagem do vinhateiro que parece mais interessado e misericordioso do que o dono da vinha contém uma peculiaridade e uma extravagância curiosa. Em quantas situações essa imagem nos leva a pensar? Em que situações essa imagem poderia nos ajudar a ponderar melhor sobre os acontecimentos antes de agir movidos pelo impulso ou guiados por crenças que abraçamos sem a devida reflexão? Ao final, não se sabe o desfecho do relato. Cabe, portanto, ao leitor a decisão sobre o que fazer a partir daquele ensinamento.
A parábola é um poderoso meio de chamada à reflexão e ao questionamento. Ao que me parece, o evangelho de hoje não tem uma resposta fácil e imediata. É um convite a uma revisão de vida, como o é todo este tempo quaresmal. É um convite ao diálogo com a vida. É uma provocação a que nos deixemos interpelar pelos acontecimentos, a que sejamos capazes de questionar nossas certezas.
Será que somos capazes de questionar ou deixar questionar nossas próprias ideias, nossa mentalidade, as crenças que nos foram transmitidas e que repetimos irrefletidamente? Será que somos capazes de dizer como Jesus: “Eu vos digo que não” (Lc 13,3.5) diante de discursos que legitimam catástrofes e violências como castigo ou vontade de Deus? Será que somos capazes de enfrentar as perguntas que a vida nos coloca e de respondê-las a partir da Palavra de Deus pronunciada na vida de Jesus e em nossos corpos e experiências?
A resposta, o desfecho, está com cada um de nós.
Maria Nivaneide de Abreu Lima é teóloga católica, leiga, mestre em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco e assessora do CEBI para área de estudos bíblicos.