por Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr via Sul21*
Nestes últimos meses, depois do ódio deflagrado por uma disputa eleitoral sem precedentes, muito se falou nos rompimentos familiares e nas acirradas discussões entre amigos e colegas de trabalho. Uma onda de intolerâncias e certezas categóricas parecia nos impedir tanto de pensar, quanto de demonstrar um mínimo de empatia com o/a outro/a. O medo, a raiva, o ressentimento e a angústia dominavam os afetos e fechavam portas para o diálogo. Como era de se esperar, o desamparo e a indignação decorrente de tudo isso invadiu os consultórios dos psicanalistas. O estrago não foi pequeno, provavelmente, vamos lidar por muito tempo com os seus efeitos.
Depois dessa guerra declarada, alguns contam os mortos, outros celebram vitória, muitos, apenas buscam cicatrizar as próprias feridas, mas tem também, aqueles que continuam magoados e decidiram se afastar por tempo indeterminado. Como as formas de reações são múltiplas, existe a turma dos conciliadores. Estes são capazes de levantar a bandeira branca e dizer “precisamos tocar a vida e parar de cultivar mágoas, afinal, o natal está chegando, não vamos estragar a ceia…”.
E agora José? O que fazer com aquele tio que num afã de indignação tu chamastes de vagabundo porque vive às custas de seus avós, sequer paga pensão dos próprios filhos, e ainda por cima sempre acusava o teu candidato de irresponsável? E o primo, defensor feroz de Deus acima de todos, embora passasse avançando o sinal com todas as mulheres, não poupando sequer as menores de idade? Pai é pai, mas não está imune, sobretudo depois de pronunciar a fatídica frase num jantar de família: “meu sonho é ver os militares no poder”. E aquela tia-avó Tutancâmon, capaz de ressuscitar somente em noites de natal que jura que tu és um comunista esquerdopata? Como encarar aquele irmão do coração que no calor da discussão disse para você ir morar na Venezuela…
Será possível passar o natal juntos?
Além de tudo isso, como sabemos, os eternos narcisismos das pequenas diferenças pulsam nestas datas, como por exemplo: o elogio somente dado a nora do filho preferido, as diferenças na escolha dos presentes, sem falar na não equivalência nas distribuições dos afetos. Pas de problème é natal, o amor irá renascer no coração de todos… Tá parecendo muito louca essa família? Quem tiver alguma mais normal, favor jogar a primeira pétala. Confesso, eu que sempre levei a pecha de estar entre os ponderados, tive o meu piti e saí do grupo de whats. Minha rebeldia adolescente durou apenas três dias, não importa, era questão de honra, kkkk… Curioso, mas um familiar sempre avesso aos encontros do feudo pedia encarecidamente o meu retorno. Grata surpresa, para além dos estereótipos, a sabedoria pode vir de onde menos se espera.
Quanto ao natal, a saída mais fácil poderia ser: # rivotril no peru. Afinal de contas, peru não tem gosto de nada e, além do mais, as pessoas tem tomado essa coisa com a mesma naturalidade com que escovam os dentes. Mas, pensando bem, o momento não é de se anestesiar, pelo contrário, cabe um esforço para retomar o diálogo e fazer as devidas autocríticas.
Assim, a tolerância e a responsabilidade com as futuras gerações podem auxiliar a superar divergências, aparentemente, incontornáveis. Mesmo porque, nunca é demais lembrar: somos seres de linguagem. Desse modo, precisamos dar valor a palavra do outro, pois este é único recurso para sairmos da lógica da exclusão, da paranoia e do culto ao eterno ressentimento.
Então, vamos deixar o rivotril de lado, mesmo porque, ninguém espera muita coisa de um peru hoje em dia. Eu já me decidi, quanto a ceia, a minha expectativa estará na sobremesa. Já estou imaginado a mesa de doces da minha falecida avó, na esquerda, sorvetes de diversos sabores, no centro esquerda, chico balanceado, no centro, o clássico pudim, na ala direita, sagu com creme e na extrema direita da mesa, o brigadeiro, de terra e ar? Deus me livre…
Hoje, quando acordei, lembrei de ter sonhado estar me esbaldando num pote de sorvete, no balanço daquela música do Chico: Vai passar nessa avenida um samba popular, cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar…
Eu sei, parece difícil cantar numa hora dessas, pois fomos duramente advertidos. No entanto, estaremos prontos para 2019, agora, mais atentos para que todo mundo tenha o direito de sustentar suas escolhas, bem como, de portar as próprias bandeiras, sejam elas quais forem…
Confesso, fiquei tentado por um pedacinho de pudim. Talvez porque o centro será inevitável em 2022.
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Norton é Psicanalista, Membro da APPOA e Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS. Este texto foi publicado originalmente no site do Jornal Sul21. As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.