Leia a reflexão sobre Marcos 1,29-39, texto de Ildo Bohn Gass.
Boa leitura!
A passagem do evangelho segundo Marcos proposta para este final de semana está claramente dividida em três partes.
A cura de uma mulher para a diaconia, o serviço (1,29-31)
No Evangelho segundo Marcos, a primeira cura realizada por Jesus é a expulsão de um espírito impuro de um homem que está sob o domínio de escribas e da sinagoga de Cafarnaum, cidade onde Jesus foi morar, ao iniciar sua missão (Marcos 1,21-28). A lei imposta pelos escribas na sinagoga e no templo, além de ser um peso na vida das pessoas (cf. Mateus 23,1-4; Lucas 13,10-17), impedia que se pensasse e agisse orientado pelo Espírito de Deus. Pois, no dizer de Paulo, a letra mata, o Espírito é que dá a vida (2 Coríntios 3,6). Por isso, Jesus salva as pessoas dessa força demoníaca que cria dependência, aliena e não liberta. Este é o evangelho que refletimos no domingo passado.
Logo que saíram da sinagoga, foram com Tiago e João para a casa de Simão e André (Marcos 1,29). Convém lembrar que, mais do que frequentar o templo, Jesus prefere as casas, que também são figura das comunidades. Ali, todas as pessoas têm acesso ao encontro com Deus. No templo, só podiam entrar os sacerdotes.
Esta narrativa relata a 2ª cura realizada por Jesus, conforme Marcos. Agora, é a sogra de Simão que está doente (Marcos 1,30). Logo que soube, dirigiu-se à cama em que ela se encontrava febril. Naquele contexto, a febre era interpretada como possessão demoníaca, isto é, forças contrárias a Deus e que diminuem a vida de quem está sob seu domínio (Ver como, em Lucas 4,39, Jesus “repreende” a febre, e ela deixa a mulher).
Três coisas chamam a atenção. 1) Ele aproximou-se (Marcos 1,31). Mais que procurar quem é o próximo, Jesus se torna próximo. 2) Tomando-a pela mão, Jesus faz algo fundamental para quem trabalha com pessoas doentes e com quem está na exclusão. Valorizando o toque, o abraço, Jesus valoriza sobremodo as pessoas debilitadas. 3) Jesus levantou-a. Enquanto estava deitada, essa mulher não podia ser sujeito com agir próprio. Dependia de outras pessoas. Colocá-la em pé faz dela uma diácona, uma pessoa livre para servir. E ela se pôs a servi-los. A sogra de Pedro tornou-se modelo de discípula que serve.
Convém lembrar que, se em Marcos a primeira pessoa curada foi um homem (Marcos 1,21-28), a segunda foi uma mulher. Jesus tratava as mulheres com a mesma dignidade com que se relacionava com os homens. Assim como tinha discípulos, tinha também discípulas. Quando Marcos menciona as mulheres que foram com ele até a cruz, cita Maria Madalena, Maria e Salomé, além de muitas outras mulheres que o seguiam, serviam e subiram com ele para Jerusalém como verdadeiras discípulas (cf. Marcos 15,40-41).
E o que nos resta senão também colocar-nos em pé e, com a força do Espírito de Jesus ressuscitado, tornar-nos pessoas livres para servir?
Podemos também interpretar a febre da sogra de Pedro como resistência contra o engajamento de sua filha e do genro (cf. 1 Coríntios 9,5) na luta em favor do Reino liderado por Jesus de Nazaré. A intervenção de Jesus junto à mulher, além de demover sua resistência, ainda a leva a também se engajar no serviço do Reino. Quantas pessoas ainda hoje resistem em perceber as forças demoníacas atuando e anestesiando o povo, mantendo-o deitado, imobilizado, diante do golpe dos que servem ao dinheiro?
A prática de Jesus liberta de doenças e de possessões (1,32-34)
Naquele dia, depois do pôr do sol e junto à porta da casa de Simão e de André, Jesus ainda curou muitas pessoas enfermas e expulsou demônios. As duas curas realizadas anteriormente, a do homem possesso e a da mulher enferma, são símbolos de toda prática libertadora de Jesus. E é prática que não para. Mesmo o sol já posto, Jesus continua libertando pessoas enfermas e endemoninhadas.
A proibição de falar – pois sabiam quem ele era (Marcos 1,34) – faz parte da intenção teológica dos autores deste evangelho. Parece que querem evitar a ideia de Jesus como um messias nacionalista, triunfalista. Porém, querem reforçar a fé em Jesus como o ungido pelo Espírito de Deus (Marcos 1,10) que vence, aos poucos e de forma humilde como o servo sofredor, as forças contrárias ao espírito do Reino. Por isso, Marcos apresenta Jesus insistindo em que não se divulgue o seu messianismo aos quatro ventos. A proibição se estende aos demônios (Marcos 1,25.34; 3,12), às pessoas curadas (Marcos 1,44; 5,43; 7,36; 8,26) e a seus apóstolos (Marcos 8,30; 9,9), reservando essa revelação somente para o momento da cruz e pela boca de um estrangeiro: Na verdade, este homem era Filho de Deus (Marcos 15,39).
Senhor, Deus da vida,
ajuda-nos a acolher a tua graça que cura e liberta das enfermidades,
dos desejos egoístas e do consumismo individualista.
Ó Deus, livra-nos dessas forças que nos seduzem
e arrastam como possessão demoníaca,
forças que nos dominam e impedem de sermos pessoas livres
para, como criaturas novas, colaborar contigo
no serviço ao teu Reino de justiça, a exemplo da mulher que curaste.
De onde vêm as forças para a nova prática de Jesus? (1,35-39)
Depois de um dia de atividades salvadoras e que vão noite adentro, Jesus descansa um pouco para estar com as energias renovadas para mais um dia de serviço à vida. Mas não basta novo vigor físico. Algo mais profundo é necessário.
Por isso, ainda de madrugada, Jesus se retira para um lugar deserto e ali cultiva sua íntima comunhão com o Pai, o Deus libertador do Êxodo. É que o deserto trazia à memória o lugar por onde Deus guiou seu povo para a liberdade. Jesus, ao orar no deserto, vem aprofundar o projeto libertador do Êxodo (Marcos 1,35).
A comunhão com o Pai é o segredo da força de Jesus na solidariedade com as pessoas mais desprezadas de sua época, entre elas as doentes e as possessas por todas as forças de alienação e que não permitem que sejam sujeitos de suas vidas. A oração é a fonte onde Jesus bebe do mais puro Espírito que sustenta sua ação emancipadora junto às pessoas em estado de dependência, seja em relação às enfermidades, seja em relação às forças que nos alienam como, por exemplo, a mídia a serviço do ídolo dinheiro, impedindo-nos de sermos filhas e filhos livres e com dignidade. Jesus nos convida a darmos uma chance ao nosso cérebro, em vez de sermos pessoas manipuladas a partir de fora.
A intimidade com o Pai, essa espiritualidade de comunhão profunda com o sagrado, faz de Jesus uma pessoa radicalmente livre. Tão livre que não sucumbe diante da tentação da fama, quando Pedro e seus companheiros lhe dizem: Todos te procuram (Marcos 1,37). Em resposta, Jesus afirma que veio para anunciar o projeto do Reino nas aldeias da vizinhança, continuando sua prática libertadora por toda Galileia.
Ó Deus,
concede-nos a graça que permite esvaziar-nos do espírito individualista,
das forças que geram ódio e discórdia, exclusão e sofrimento.
Senhor, que teu Espírito libertador do deserto nos transforme e impulsione,
tal como moveu Jesus de Nazaré,
ao ponto de sermos sempre mais semelhantes a ti,
pessoas livres para o serviço da vida,
da cura e de tudo que domina como possessão em nossas mentes e corações.
Amém!