Em alusão ao dia da Saúde e Nutrição, o CEBI partilha o artigo de Ana Maria Petronetto Serpa e Terezinha Baldassani Cravo, que alude a fome e as doenças dela advindas, que tem por causa inicial as desigualdades sociais.
A alma da fome é política (Betinho)
Trazer um panorama do empobrecimento e da fome no Brasil hoje é nos colocar diante de uma realidade dolorosa da fome no país e no mundo, agravada pela pandemia e pelo desmonte das políticas públicas nos últimos anos. Foram esforços de duas décadas para superação dessa triste realidade e, em apenas seis anos, o país voltou ao Mapa da Fome.
É sobre esse fenômeno estrutural que o texto trata, propondo a possibilidade de “esperançar”, no sentido freiriano, uma sociedade mais justa, que enfrente a pobreza, elimine a fome e reduza as desigualdades sociais, estabelecendo novos pactos de convivência social, que fortaleçam as experiências coletivas de emancipação das classes populares empobrecidas.
A pobreza é um fenômeno estrutural no Brasil e o seu enfrentamento exige profundas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais em nossa sociedade. Séculos de escravização de negras e negros sem a devida reparação, de concentração de terras e formação de latifúndios e de autoritarismo político com poucos períodos de vigência de regimes democráticos, em que as necessidades da população são trazidas ao debate e dão origem a políticas públicas garantidoras de direitos, consolidaram esta situação. Por outro lado, a universalização tardia do acesso à educação básica, com pouco ingresso das juventudes brasileiras no ensino médio, ensino superior restrito a poucas, são fatores que, historicamente, deram origem ao fenômeno da pobreza com todas as suas consequências.
Hoje falamos de “empobrecimento” ou “trajetórias de empobrecimento” para significar um processo em que a produção e a reprodução da pobreza, e consequentemente da fome, tem sido permanente, com poucos avanços sociais, e que resultou de decisões políticas tomadas nos séculos passados. Uma condição de pobreza que vai se perpetuando e propostas de maior inclusão social e redistribuição de renda e riquezas são vistas como ameaças aos privilégios das classes dominantes. Neste momento como prejuízo aos rentistas e ao capital financeiro. Velozo e Madeira (1988), recorrendo ao argumento histórico para compreender processos culturais e a cultura política no país, afirmam que a formação social patriarcal e a escravidão modelaram padrões de um relacionamento social caracterizados por profunda ambiguidade entre os domínios do público e do privado e estreita aproximação entre as noções de direito e privilégio, dando origem aos fenômenos do patrimonialismo, patriarcalismo, clientelismo e dificuldade de compreensão e vivência do conceito de República (Res Pública).
Conforme afirma o texto base da Campanha da Fraternidade 2023, “Fraternidade e Fome”, “as raízes da fome estão, especialmente, na distribuição iníqua da renda e das riquezas, que se concentram nas mãos de poucos, deixando, na pobreza, enormes contingentes populacionais nas periferias urbanas e nas áreas rurais”1. É um processo que concentra riqueza nas mãos de poucos (“premia os fortes”) e quase nada redistribui à grande maioria da população (“pune os pobres”)2.
Dessa forma, agravam-se a desigualdade social e situações de empobrecimento, precarização das condições de vida, fome, adoecimentos e violências diversas. O texto base afirma ainda que “a desregulamentação e a flexibilização dos mercados vêm retirando do Estado sua função social e política, em prejuízo do seu dever de justa intervenção na economia e na redistribuição de renda”3.
Após os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Roussef (2011-2014 e 2015-2016) este último período de governo, abreviado por um golpe parlamentar, os governos que vieram assumiram uma direção ultraneoliberal, com medidas drásticas de ajuste fiscal4, imposição de um teto de gastos públicos (os segmentos conservadores consideram que a destinação de recursos para a saúde, educação, assistência social e outros é “gasto” e não “investimento” (o que é um discurso ideológico que favorece a manutenção dos seus interesses e privilégios), redução de recursos para políticas sociais com precarização dos serviços, gerando, senão desmonte, pelo menos uma extrema fragilização dos sistemas públicos de proteção e promoção social.
As consequências não demoraram a se revelar com o aumento do número de famílias empobrecidas, de empregos precários, pessoas em situação de rua, crianças em trabalho infantil (uma situação já superada no país), insegurança alimentar grave, violências e violações diversas como o feminicídio, o assassinato das juventudes pretas, pobres e periféricas, o encarceramento em massa de pobres e a ampliação do sistema prisional, sempre demandado pela população, consumindo grande percentual de recursos públicos.
O agravamento da fome, a situação das famílias durante a pandemia e a incapacidade de os governos responderem às demandas com políticas públicas consistentes têm provocado o surgimento de ações solidárias pelas igrejas e coletivos diversos, que se organizam e fazem coleta de alimentos ou mesmo produção de refeições, atendendo esta necessidade humana básica perversamente deixada entregue às oscilações do mercado. O movimento solidário da sociedade se fortaleceu com a organização de coletivos de mulheres, de jovens e de vizinhança. As comunidades organizadas tornam-se um apoio importante e necessário na defesa da vida de muitas famílias com vínculos fragilizados. Observa-se que as instituições religiosas que têm compromisso social são fontes de apoio e de defesa da vida, dos direitos e da dignidade humana nos territórios, além de ampliar e fortalecer os laços sociais locais.
Em 2022, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer, representando 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome em pouco mais de um ano, segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil5. Mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com a insegurança alimentar em algum grau (leve, moderado ou grave, este último significando presença da fome, conforme a escala EBIA)6. Em 2022, apenas 4 entre 10 domicílios tinham segurança alimentar e nutricional. Os seis outros estão em algum nível da escala que vai dos preocupados com a possibilidade de não ter alimentos no futuro até os que já passam fome.
O inquérito apontou que são 125,2 milhões de brasileiros e brasileiras que passaram por algum grau de insegurança alimentar, significando um aumento de 7% desde 2020, e de 60% em comparação com 2018. De 2004 a 2013, políticas públicas de combate à pobreza reduziram a fome a 4,2% dos lares brasileiros, o que tirou o Brasil do Mapa da Fome.
O inquérito revelou algumas dimensões que devem ser levadas em conta na formulação de políticas públicas e também das ações solidárias. Famílias do campo passam mais fome, que também atinge as regiões do país de forma desigual, com maior percentual de famílias em insegurança alimentar nas Regiões Norte (71,6%) e Nordeste (68%). A fome tem cor, gênero e nível de renda sendo mais grave entre segmentos com renda per capita de até ¼ do salário-mínimo (43% entre eles). Em lares com crianças a fome é dobrada e também atinge quem não consegue chegar à escola. Falta água para beber e cozinhar, a chamada “insegurança hídrica”, que atinge 12% da população brasileira e que deve ganhar mais visibilidade e espaço na agenda de prioridades dos movimentos sociais e conselhos estaduais e municipais de segurança alimentar e nutricional (CONSEAs).
As pessoas têm vergonha de sentir fome, sentem tristeza e constrangimento (8,2% da população, significando 15,9 milhões de pessoas no Brasil). Geralmente as mulheres são as que recorrem às paróquias e aos órgãos de proteção social nos territórios em busca de alimentos. São elas, mais que os homens, que buscam ajuda para suas famílias. O acesso à renda é condição para a aquisição de alimentos, o que também permite escolhas e exercício da autonomia. O Brasil já superou esta condição e retrocedeu.
Cabe ao povo exercer pressão para retomar e fortalecer o conjunto de políticas públicas capazes de garantir segurança alimentar e nutricional adequadas à população, em especial o programa Bolsa Família e a ampliação da sua cobertura. Cabe também movimentar-se para criar e/ou fortalecer os conselhos estaduais e locais, exigir o trabalho integrado/intersetorial entre as diversas políticas sociais (educação, trabalho, saúde, assistência social, cultura, esporte, moradia, cidadania etc.), potencializando os efeitos de cada uma, além de fortalecer a compreensão de que a destinação de recursos públicos para as políticas sociais é um “investimento”, um sinal de respeito à dignidade humana e jamais um “gasto” como a elite brasileira quer nos fazer crer.
Autoras:
Ana Maria Petronetto Serpa: Professora Universitária Aposentada, Membro do CONSEA do ES e colaboradora da Campanha Paz e Pão do Vicariato para a Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória.
Terezinha Baldassani Cravo: Professora, mestre em Educação e membro da Coordenação da Campanha Paz e Pão do Vicariato para a Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória.
Notas:
1 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Alimento dom de Deus, direito de todos. Exigências evangélicas e éticas para a superação da miséria e da fome. Campanha da Fraternidade 2023: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2022, p. 35.
2 Neste sentido, também afirma Standing (2010): “o sistema de mercado está produzindo situações em que os vencedores ganham tudo e os perdedores perdem tudo”. A política social tem que corrigir essa tendência injusta e estressante.
3 CNBB, 2022, p. 35.
¨4 “A austeridade é uma ideologia fracassada que é esgrimida pelos ricos para repassar os custos das crises para os pobres. Historicamente tem provocado desemprego, conflitos sociais, guerras.” Resenha publicada no jornal Folha de São Paulo, elaborada por Eleonora de Lucena do livro de BLYTH, Mark. Austerity, the history of a dangerous idea. Oxford: Editora Oxford University Press, 2013 (LUCENA, E. Austeridade não funciona e só protege os ricos, diz autor. Folha de São Paulo, resenha, 2013).
5 REDE PENSSAN. Segundo inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. Disponível em: https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil. Acesso em: 23 dez. 2022. Pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (REDE PENSSAN). Dados coletados de 11/2021 a 04/2022 em 12.745 domicílios e 577 municípios brasileiros
6 Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) que vai da situação de segurança alimentar à situação de insegurança alimentar leve, moderada e grave.
Referências Bibliográficas
REDE PENSSAN. Segundo inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da CO-
VID-19 no Brasil. Disponível em: https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-
-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil. Acesso em: 23 dez. 2022.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Alimento dom de Deus, direito de todos. Exigências evangélicas e éticas para a superação da miséria e da fome. Campanha da Fraternidade 2023: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2022.
LUCENA, E. Austeridade não funciona e só protege os ricos, diz autor. Folha de São Paulo, resenha, 2013.
STANDING, G. Respondendo à crise da transformação global: porque uma renda básica é necessária. In: COELHO, Maria Francisca Pinheiro; TAPAJÓS, Luziele Maria de Souza; RODRIGUES, Mônica. (orgs.). Políticas sociais para o desenvolvimento: superar a pobreza e promover a inclusão. Brasília: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome; UNESCO, 2010.
VELOSO, M.; MADEIRA, M. A. Política, cultura e cidadania no Brasil. Parlamento 1999-2002. Revista do Inesc, Brasília, p. 13-15, set. 1998.