
Como não desgastar o verbo “esperançar”? Como seguir em uma práxis dialógica em tempos de automutilação e desagregação de nós mesmos? De que maneira a educação popular, transversalizada pelas categorias raça-classe-gênero podem contribuir para a construção de um mundo menos malvado? De que maneira as experiências e tecnologias pelas nossas ancestralidades podem nos mover na retomada de valores civilizatórios que assumam os valores civilizatórios afro-brasileiros como algo inerente à nossa sociedade, dentre eles o cooperativismo, a corporeidade, a musicalidade, a memória, religiosidade, o axé e a diversidade?
O contexto histórico de meados do século XX provocou o surgimento de inúmeras experiências educativas na América Latina, que assumiram como perspectivas a denúncia dos processos de exclusão materializados na negação de direitos sociais, econômicos e culturais. Ao problematizar a perspectiva estática e fatalista de um mundo que não girava, não se movimentava, a educação popular profanou a pedagogia sacra e de base imperialista, hegemônica, anunciando que “somente o povo educa o povo”, “e que o mundo não é, mas está sendo”, desconstruindo a ideia de que uma ação educativa popular seria algo exclusivamente do Estado, universalizante e destinado às massas, por isso, pobre, sem custos e de baixa qualidade.
Na contra-agenda da exclusão social, a educação popular constituiu-se com suas especificidades. como um modo educativo específico, que busca reconhecer e dialogar de forma horizontal com os saberes das classes populares, legitimando-os não como algo menor, desprovido de cientificidade, mas como uma marca própria de produção de um conhecimento, cuja contribuição promoveu o desenvolvimento tecnológico e cultural, fundamentais para a resistência de grupos sociais subalternizados.
Popular nessa perspectiva significa: saber poder do povo! Povo este que teve suas terras roubadas, seus corpos mutilados e vendidos, suas mulheres estupradas, suas crianças aculturadas e suas crenças e danças criminalizadas. Nunca fazendo para, mas sempre com esse povo plural, cuja subalternidade sempre foi o destino traçado pelo eurocentrismo, que a educação popular se reinventa ampliando suas categorias e indagando-se: em tempos de estado em nós, e de ultraliberalismo, como atuar na construção de um projeto popular de educação?
No enfrentamento desse desafio, observamos que nos últimos anos foram forjadas, tanto nos grandes centros urbanos, em especial nas regiões mais periféricas, bem como no campo, inúmeras experiências educativas no campo da educação popular.
Essas experiências assumiram o legado da teoria crítica fundamentada no marxismo, mas ampliaram seus olhares e, consequentemente, suas ações para as categorias de gênero, raça, diversidade sexual, questões socioambientais, temáticas relacionadas às deficiências e transtornos e outros.
Essa ampliação exigiu o descolamento teórico, bem como a reformulação de práticas pedagógicas conscientes de que a sociedade capitalista excludente é a base e ao mesmo tempo estrutura promotora das mais diversas sobreposições dos processos de exclusão. Em síntese, as ações educativas de caráter popular estão aprendendo que um curso preparatório para o ENEM destinado ao povo preto, precisa reconhecer em seus sujeitos as encruzilhadas identitárias e suas singularidades, pois entre suas educandas pode existir uma que seja: mulher, transexual, pobre, preta e com deficiência intelectual.
Essa sobreposição nos provoca, nessas primeiras décadas do século XXI, a nos indagar:
- a) Quais são as necessidades educativas desses sujeitos?
- b) Como construir percursos que viabilizem luta por direitos e por políticas públicas articuladas em tempos de extrema mercantilização do Estado?
- c) De que maneira as singularidades dos sujeitos podem compor uma força de marcha coletiva de enfrentamento do estado capitalista?
Essas e outras perguntas têm sido objeto de reflexão permanente em diferentes coletivos de mulheres, coletivos do povo preto, institutos que atuam nas periferias, movimentos sociais, associações de moradores, cursos preparatórios, dentre outros. Observamos que as ações desenvolvidas têm crescido significativamente, o que por um lado nos preenche de esperança, mas, por outro, nos desperta preocupações, visto que esses novos agentes têm clamado por tempo para estudo e formação continuada, o que é fundamental para que a ação reflexiva não se transforme em ativismo aligeirado.
Nesse sentido, temos como desafio um retorno às nossas ancestralidades, nos fundamentos por elas construídos, porém conectados com uma realidade do presente, muito dinâmica, em rápido movimento, em tempos de golpes sem tanques, guerras que não diferenciam quartéis de hospitais, civis de militares, palácios de orfanatos, nem homens armados de crianças.
Somente o diálogo com as práticas ancestrais, com a memória coletiva de uma utopia de um mundo que assumia como horizonte a promoção da dignidade humana, nos possibilitará esperançar, sem desgaste, sem desespero, sem morrer aos poucos. Trata-se da retomada de nós, conosco! Com a vida, sem corrida, com vitórias colhidas na educação de base que nos permite sonhar, viver, celebrar em comunidade, ou seja, em unidade comum.
Carlos Fabian de Carvalho
Licenciado em História pela UFES
Mestre em Educação pela UFMG
Doutor em Educação pela UFES
Membro da Comissão de Promoção da Dignidade Humana da Arquidiocese de Vitória
Educador de Jovens e Adultos
Professor-Formador Grupos Populares