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Encantar a Política com a Profecia da Fé e da Espiritualidade

Marcelo Barros[1]

“Encantar a Política com Arte, Cultura e Democracia”  é a convocação que apaixona a todos/as nós, companheiros e companheiras que sentimos no mais profundo do nosso ser o impulso para nos transformar interiormente e lutarmos juntos pela transformação da sociedade e do mundo. Encantar a Política com Arte, Cultura e Democracia é o tema escolhido para O XII Encontro Nacional de Fé e Política. É preciso que isso não seja apenas um título, slogan, ou mesmo um programa genérico ou questão de metodologia. É bem mais do que isso: se trata de um caminho de espiritualidade.

Até hoje, há quem confunda espiritualidade e espiritualismo. Na realidade, o espiritualismo separa o material e o espiritual. Divide sagrado e profano. Restringe-se ao individualismo intimista e não ultrapassa as devoções rituais.

Bem diferentemente disso, Espiritualidade é a energia interior de amor e comunhão que existe em todo ser humano e que é vivida socialmente. As religiões e tradições espirituais reconhecem que essa energia é dom divino e diviniza todo ser humano. O que diviniza a pessoa e a sociedade humana é a amorosidade.

O Cristianismo crê que essa dimensão amorosa presente na vida de cada pessoa e das comunidades é a própria presença do Espírito Santo em nós. Por isso, o apóstolo Paulo fala em uma “vida conduzida pelo Espírito”. Trata-se do Espírito da Vida que em cada tradição espiritual tem um nome mas sempre se distingue por ser energia de vida.

Conforme diz o prólogo do evangelho de João, “nele está a vida e a vida é a luz, ou seja, a regra da humanidade” (Jo 1, 3). Portanto, tudo o que favorece a vida (pessoal e coletiva) é espiritual. O que não conduz à vida e não expressa amor à vida não é espiritual. Por isso, de um modo ou de outro, toda espiritualidade é espiritualidade ligada à vida concreta, ou seja, ao que os povos indígenas chamam bem-viver e bem-conviver. O evangelho explica esse caminho como “vida em abundância” ou “intensidade de vida feliz” (Jo 10, 10).

Quanto mais nos humanizarmos, mais nos abriremos ao sopro da ventania divina que enche de encanto a nossa vida pessoal, nossas relações afetivas e o trabalho pessoal e comunitário para transformar a sociedade e o mundo.

O antropólogo Eduardo Viveiro de Castro afirma: “os índios podem nos ensinar a viver melhor em um mundo pior”. Ele diz que isso se realiza através de um “retorno progressivo e criativo (portanto, não apenas nostálgico) às cosmologias antigas e a suas inquietudes”[2]. O  Xamã Davi Kopenawa afirma que as danças dos Xapiris (espíritos da floresta) nas noites de lua reconstituem o equilíbrio da natureza (ecossistema) e ajudam os Yanomami a retomarem sua alegria de viver[3].

Podemos descobrir a mesma energia de vida nas espiritualidades afrodescendentes. Nelas, a dança é instrumento de recomposição da harmonia da vida. O cultivo do Axé como energia vital é essencial em todas as correntes do Candomblé[4]. Explica um Babalaorixá: “Entre os humanos e os Orixás, o Candomblé reforça a harmonia. Dá-se uma troca de Axés e a dinâmica da Vida e da Alegria é garantida”[5]

Os cultos de matriz africana, apesar de condenados e perseguidos pelas Igrejas, se constituíram como elementos de resistência cultural para a população negra e muita gente pobre que se juntou nas comunidades de Candomblé, Umbanda e outras tradições espirituais.

No Judaísmo, o shallom se traduz como paz, saúde e alegria. No Islã, a imagem de Deus é Misericórdia e os/as fieis são chamados/as a ter o coração aberto a todos e a tudo (Cf. Corão, 1ª sutra). No Budismo, a compaixão se compreende não apenas em relação ao outro, mas como “compreensão encarnada da interdependência entre tudo e todos”[6].

Em janeiro de 2006, no Fórum Social Mundial em Caracas, o presidente Hugo Chavez declarou: “Política só se pode fazer com amor. Se não é feita com amor, a Política se degrada e passa a ser mera politicagem”. A Política com P maiúsculo, como chamava Dom Helder Camara tem como eixo central o exercício do bem-comum e o objetivo de humanizar a Economia e as estruturas fundamentais do convívio humano na Terra

Assim como toda árvore é sadia se sua raiz estiver sã, aquilo que o papa Francisco chama “a melhor Política” (Cf. Fratelli Tutti, capítulo VII) tem como alicerce a espiritualidade libertadora.

É fundamental que as religiões e tradições espirituais façam emergir do tesouro de suas tradições não apenas a capacidade para transformar as pessoas interiormente, mas a vocação profética para transformar o mundo. Comumente, as religiões se inseriam nas estruturas da sociedade, almejando apenas ter liberdade e direito de cultos e das práticas que lhes são próprias. No entanto, isso acabou favorecendo a cumplicidade e conivência entre religiões e impérios e sistemas políticos opressivos.

Atualmente, os fundamentalismos religiosos se espalham pelo mundo e testemunham espiritualidades fanáticas e que expressam ódios e preconceitos. É preciso nos vacinar e ajudar as comunidades a serem vacinadas contra essa epidemia da crueldade religiosa que sempre perseguiu os profetas de Deus Amor, nas mais diversas religiões e matou Jesus Cristo. É fundamental que as mais diversas tradições espirituais descubram que a espiritualidade verdadeira é sempre crítica e transformadora. É preciso unir fé e política de modo que as religiões possam exercer uma função profética que cabe à fe. Fé no projeto divino de transformar o mundo. Assim, poderão sempre desenvolver a espiritualidade libertadora como força de resistência para construirmos uma sociedade de paz, justiça e comunhão com a Mãe Terra e a natureza.

Para quem é militante nesse caminho da fé, o primeiro desafio é unir o que podemos chamar de micro-política à macro-política. Isso significa lutar para que a vida pessoal, as relações humanas domésticas e próximas possam refletir o que acreditamos e dizemos querer na grande Política municipal, estadual, nacional ou do mundo. Muitas vezes, ainda encontramos nos nossos grupos pessoas que defendem uma nova Política no plano de um mundo futuro, mas no dia a dia da vida são pessoas autoritárias e preconceituosas em relação aos outros. Homens que se dizem revolucionários quando debatem o Socialismo ou formas de governo, mas em casa se mantêm machistas e dominadores. Pessoas que lutam contra a corrupção perpetrada pelo Capitalismo, mas no plano pessoal nem sempre se preocupam de ser totalmente transparentes na economia do cotidiano e nos gastos que o grupo ou a comunidade lhe confia.

O Mahatma Gandhi propunha a regra fundamental de toda espiritualidade libertadora: “Comece por você mesmo/a, a mudança que deseja para o mundo”.  Sem esse cuidado, não há espiritualidade. Há apenas tática política ou politiqueira que pode até ser de esquerda, mas não é verdadeiramente libertadora.

Ora, isso não ocorre na vida de ninguém de forma espontânea. É preciso cultivar e praticar por um método que é exigente. É preciso assumir como método espiritual de vida uma capacidade permanente de autocrítica e de abertura à crítica fraterna. Você só pode saber se tem espiritualmente caminhado ou não à medida que sente em você maior abertura para as críticas que recebe e maior capacidade de se rever permanentemente nas posições que toma e nas suas relações humanas.

Tanto no caminho espiritual cristão, quanto em outras tradições espirituais, a Oração consiste, principalmente, na disponibilidade interior de abrir o coração à escuta da Palavra de Deus que nos chega pelas outras pessoas e na capacidade de escutar a si mesmo/mesma não para se conformar e permanecer como está, mas, ao contrário para mudar. O apóstolo Paulo escreveu: “A pessoa renovada nunca deixa de se renovar, permanentemente, à imagem daquele que a criou” (Ef 4, 24). No século IV,  São Gregório de Nissa afirmava que “na vida espiritual, a pessoa se inicia e caminha de início em início por inícios que nunca têm fim”.

 

Leonardo Boff nos ajudou a unir o grito da Terra e o grito dos pobres. O papa Francisco oficializou essa visão, quando na Laudato sii, insiste na Ecologia integral. Esse trabalho de reconstrução da unidade entre o ser humano, a terra e a natureza é o que o papa chama de “conversão ecológica” (Laudatum sii n. 216- 221) [7].

Isso que o papa propõe e pede, de certa forma, é vivido quase que naturalmente por comunidades originárias, nas quais a espiritualidade consiste em ver os espíritos da Terra e de todos os seres vivos virem brincar e dançar com os humanos em uma dança que reconstrói a vida e recompõe a harmonia do universo. Isso é a espiritualidade libertadora que antecipa a expectativa da vitória final, mas já acontece mesmo no meio da luta e tem função motivadora, energizadora e que alimenta esperança. Nessa dialética de luta e libertação, é a espiritualidade que dá força para a resistência pessoal e comunitária. Na carta à comunidade cristã de Roma, o apóstolo Paulo afirma que toda criatura – toda a criação – está gemendo, mas essas dores são como dores de parto. Não só a natureza, mas, nós mesmos que temos em nós as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, esperando a libertação de nossas vidas, de nossos corpos, pois é na esperança que somos salvos... (Rm 8, 22- 24).

 

 

 

[1] – Marcelo Barros é monge beneditino, teólogo e assessor de Comunidades Eclesiais de Base, Pastorais Sociais e movimentos populares como o MST.

[2] – VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo, no Prefácio ao livro: KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce, A Queda do Céu, Palavras de um Xamã Yanomami, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2015, p. 35.

[3] – idem, p. 328- 329.

[4] – AZEVEDO SANTOS, Maria Stella, Meu tempo é agora, Salvador, Ed. Assembleia Legislativa da Bahia, 2ª ed. 2010

[5] – CAMARGO, Odagil Nogueira, Experiência religiosa no Candomblé, São Paulo, Ed. Méritos, 2013, p. 15.

[6] – CALERI, Donati, Espinosa e Zen budismo, Beatitude e Iluminação, Rio de Janeiro, Ed. 7 Letras, 2017, p. 164.

[7] – PAPA FRANCISCO, Carta encíclica Laudato sii, Sobre o cuidado da Casa Comum, Documentos Pontíficios 22, Brasília, Edições CNBB, pp. 127- 133.

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