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Cuidando do jardim de Deus

Ecoando o dia Internacional contra a Desertificação, partilhamos o artigo de Amós López Rubio, que fala sobre nossa responsabilidade com o Jardim de Deus, ou seja, nossa Casa Comum.


Cuidando do jardim de Deus
Uma meditação em torno de Mateus 21, 33-44

A parábola dos agricultores perversos é situada por três dos evangelhos, nos dias mais difíceis e conflitantes do ministério de Jesus. De acordo com os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas, o complô que estava sendo tramado entre os inimigos de Jesus, sacerdotes e escribas, principalmente, já era uma questão de tempo, esperavam apenas o momento oportuno para prender Jesus e levá-lo perante as autoridades romanas para pedir sua execução como blasfemador e agente perturbador dos bons costumes, da moral religiosa, como um mestre perigoso que ensinava coisas contra a lei de Deus.

Quando Jesus relata esta parábola, em algum lugar da cidade de Jerusalém, os sacerdotes e escribas compreenderam que estava sendo dirigida contra eles. Na verdade, a parábola poderia ser lida como um resumo da história de Israel. Deus chamou um povo para ser seu testemunho entre as nações, chamou este povo de uma situação de escravidão à liberdade, deu-lhes leis sobre as quais poderiam erguer uma nação com paz e justiça, onde fosse praticada a solidariedade com os mais necessitados, onde as pessoas pudessem trabalhar e viver do fruto de seu trabalho, onde pudessem construir suas próprias casas e nelas habitar, onde o culto religioso fosse muito mais que a observância de alguns ritos, que fosse a expressão da própria vida do povo e do amor, e a justiça que a obediência a Deus exigia das pessoas.

Mas, esse projeto não pôde se tornar realidade porque o ser humano também tinha seu próprio projeto, e quase sempre não coincidia com o projeto de Deus. O projeto humano está baseado nas desigualdades econômicas e nas injustiças sociais, sobre o domínio de poucos sobre muitos, sobre o poder das armas e das leis que favorecem aos poderosos, está baseado sobre uma religião que impõe fardos e práticas religiosas que servem apenas àqueles que controlam a sociedade, sacerdotes, juízes e reis. É também um projeto construído sobre o domínio da autoridade do ser masculino sobre mulheres e crianças, e sobre todo o mundo criado, como novo deus e senhor da criação.

Por isso, cada vez que Deus enviava seus profetas e profetisas para falar ao povo e a seus governantes que eles haviam se afastado do projeto original para seguir seus próprios caminhos de morte e destruição, eles sofriam a rejeição, a incompreensão, a perseguição, o exílio, e até mesmo a tortura e a morte. Jesus dá continuidade a este ministério profético e, de igual modo, faz enfrentamento aos poderosos de seu tempo, dizendo que o reino de Deus tinha chegado para produzir arrependimento, reconciliação, justiça, paz, e para retomar o caminho perdido a Deus e ao próximo.  

Mas o filho de Deus também não foi escutado; tinham medo de seu ensinamento porque seus privilégios, o poder e a ordem do mundo que haviam construído poderiam desmoronar. Então, fizeram o que quase sempre se faz diante das ameaças: as eliminam. Acusaram-no injustamente, armaram um julgamento onde tudo já estava decidido de antemão, o condenaram e crucificaram. Então, qual foi a reação de Deus? A partir da vida e da mensagem de Jesus, Deus revela seu projeto a todos os povos, decide confiar seu jardim a outras mãos. Já que os primeiros agricultores não souberam apreciar o valor do jardim que lhes foi dado, então vamos deixar que outros tenham a possibilidade de tentar fazê-lo, de tentar acolher o projeto de Deus e erguer uma nova humanidade onde caibam todos e todas, onde haja trabalho, pão, casa, e onde as pessoas possam se amar, compartilhar o que têm e realizar sua vocação na vida.

Chegamos ao século XXI e as coisas não mudaram muito. Nós, seres humanos, seguimos tentando construir nosso próprio projeto, não o de Deus. Novas vozes proféticas continuam a se levantar na história; homens e mulheres que nos recordam o projeto de Deus e têm se comprometido com ele até oferecer, muitas vezes, suas próprias vidas. No meio desta história humana da qual fazemos parte, onde também assumimos uma parcela de responsabilidade, a igreja nem sempre se identificou com o projeto de Deus. Muitas vezes nos comprometemos com seu reino de paz e amor e, em outras, nos voltamos contra ele e não fomos fiéis ao evangelho de Jesus.

As ideias seguintes podem nos ajudar a recuperar o sentido de nossa missão e projeto como povo de Deus, para que nosso jardim, que é a nossa casa, nossa igreja, nossa sociedade, nosso mundo, possa ser um lugar de vida plena e abundante para cada pessoa e cada ser vivente.

Primeiro, valorizemos o que temos e o que somos como algo que nos foi dado. Embora, de fato, isso seja em grande parte o fruto de nosso próprio esforço, não esqueçamos que tudo o que alcançamos na vida, em qualquer ordem, não só reflete a bondade de Deus, mas, foi alcançado com a companhia e o apoio de outras pessoas. Somos seres que vivem e crescem em meio a um tecido de relações, somos interdependentes, necessitamos dos outros para chegar a ser, para alcançar metas, para realizar nossa vocação no mundo; e essa vocação, a partir da fé cristã, sempre se orienta na direção dos outros, ao próximo, ao serviço em favor da vida, da paz e da justiça.

Em segundo lugar, sejamos sensíveis e agradecidos, e não egoístas, indiferentes. A ingratidão e a soberba são as atitudes que levaram os agricultores da parábola a uma crescente desumanização, até se converterem em criminosos. O que temos nos foi dado e devemos cuidar com toda responsabilidade. Nossa preocupação não pode se centrar somente em nosso presente e futuro, vivendo nossa vida sem nos importarmos com o amanhã. Um dos pensamentos mais importantes nos atuais movimentos ecologistas e ambientais é esta pergunta: que tipo de mundo vamos deixar para nossos filhos? E eu também perguntaria: que modelo de família, de igreja, de sociedade queremos para nossos filhos e filhas e para todas as gerações futuras?

Em terceiro lugar, peçamos a Deus a abertura necessária da mente e do coração para poder reconhecer a seus profetas e profetisas, a seus filhos e suas filhas que estão constantemente nos alertando sobre nossos próprios caminhos, indicando se estamos nos afastando do projeto de Deus ou não. Recebamos e escutemos o outro e a outra não como nosso oposto ou inimigo, mas como alguém que pode nos ajudar a crescer, a compreender, a reconhecer nosso erro e poder superá-lo.

Uma das principais vozes proféticas em nossos dias nos vem dos povos originários de nossa América. O que nas diversas espiritualidades de nossos povos é conhecido como o Bem-viver, é uma proposta de mudança em todas as ordens e prioridades da vida pessoal, social e ambiental. Sugere uma nova ética baseada na alteridade, reciprocidade, justiça e bem-estar comum. Apresenta-se como uma alternativa ao modelo de crescimento econômico neoliberal e desenvolvimentista, questiona seus fundamentos ideológicos – como o patriarcalismo, o antropocentrismo – e lança um apelo de emergência diante da irracional devastação dos ecossistemas, convocando a uma união de esforços para reverter os danos à Natureza e a toda sociedade humana. 

Na linguagem do Evangelho, dizemos que vivemos em um kairos de Deus, tempo oportuno de conversão, libertação e salvação. Na linguagem do Bem-viver, vivemos tempos de pachakuti, tempo de mudança e transformação, onde as experiências negativas são colocadas na balança da história, para orientá-la ao seu lado positivo e esperançador. Esse novo mundo que queremos – o jardim sonhado de Deus – será possível com base na solidariedade e reciprocidade – compartilhando o que temos -, na recuperação e respeito da memória e sabedoria das culturas – em diálogo fecundo com os desafios atuais – , e na partilha dos caminhos que possibilitem outro modelo de vida, com paz e harmonia.

São as utopias que se entrelaçam e se alimentam mutuamente. Frente a um neoliberalismo que cultua a ideia de progresso ilimitado e alienante das maiorias empobrecidas, o Bem-viver alimenta a utopia de uma economia social, onde uma nova organização econômica se faz autônoma do capital e do poder como domínio, para colocar-se a serviço da vida, e se abraça com a utopia evangélica da nova comunidade de irmãs e irmãos, onde os bens são distribuídos de maneira justa e onde não há pessoas necessitadas.

Diante da globalização da cultura do consumo como única possibilidade de realização e felicidade, o Bem-viver alimenta a utopia que propõe uma nova sabedoria holística, afirmando a diversidade de formas, conhecimento e de construção do bem-estar, e se abraça com a utopia evangélica de uma experiência renovada do divino e o humano, onde possa emergir uma mística integradora da espiritualidade e compromisso político. Frente a um sistema onde as políticas de mercado governam e decidem, e os valores éticos e democráticos são rejeitados, o Bem-viver alimenta a utopia de uma sociedade participativa, inclusiva, não hierárquica e que respeita a diversidade cultural e política, e se abraça com a utopia de uma nova ordem onde os primeiros são aqueles que servem aos demais, onde relações de afeto e fraternidade-sororidade substituem relações de domínio e opressão.

Vivemos no mesmo jardim e cultivamos a mesma terra. O Bem-viver dos povos originários é também a vida em abundância de Jesus de Nazaré. Para que a vida seja plena, todas as formas da existência devem compartilhar o poder, a palavra, a razão, as utopias que promovem o bem-estar comum. Devem compartilhar a responsabilidade de traçar uma história comum e uma identidade humana integradora, no respeito à diversidade, à alteridade, à diferença que não significa dualismo nem inimizades, nem egoísmos, mas traçar caminhos de salvação coletiva, comunhão com o Tecido Comum da existência, no Amor Universal. Trata-se do novo céu e da nova terra, feitos segundo as novas imagens de Deus, que anunciam a alvorada de outro mundo possível.

Amós López Rubio
Amós López é membro da equipe pastoral da Fraternidade de Igrejas Batistas de Cuba e membro da mesa nacional do Centro Memorial Dr. Martin Luther King, Jr.

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