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Veto presidencial impede a melhoria da educação escolar indígena no Brasil

Veto presidencial impede a melhoria da educação escolar indígena no Brasil

A Relatoria de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil, apoia as recentes manifestações de especialistas e organizações indígenas e indigenistas sobre o Projeto de Lei n. 5954/2013 e expressa sua preocupação com relação ao recente veto da Presidenta Dilma Roussef ao referido projeto.

O PL 5954/2013, de iniciativa do Senador Cristovam Buarque (PDT/DF), visa alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para fazer respeitar o direito à educação específica e diferenciada dos povos indígenas no Brasil, inclusive no processo de avaliação. O PL foi aprovado em todas as comissões por que passou no Congresso Nacional e contou com a contribuição de diversos parlamentares engajados no aperfeiçoamento dos dispositivos da LDB.

A iniciativa busca respaldar algumas (ainda poucas) práticas de educação diferenciada e específica já existentes e positivamente reconhecidas por seus resultados, a exemplo do Projeto Ibaorebu do povo Munduruku. Nesses casos, ainda que não consolidados por completo em políticas públicas, tem sido possível transformar a ação educativa numa ação também de fortalecimento comunitário das identidades e das culturas indígenas. Essas experiências educativas permitem a integração de conhecimentos indígenas e não-indígenas para a manutenção e o desenvolvimento da qualidade de vida local das populações indígenas a partir da atenção de suas necessidades especiais.

Corroborando o entendimento, em 2012, o Conselho de Direitos Humanos da ONU encomendou um estudo sobre o papel das línguas e culturas na promoção e proteção dos direitos e culturas dos povos indígenas. Esse estudo, conduzido pelo Grupo de Peritos da ONU sobre direitos indígenas, informa que povos indígenas em todo o mundo foram e ainda tem sido submetidos a discriminação e políticas assimilacionistas com fortes repressões, inclusive de violências físicas, em razão de falarem suas línguas maternas, causando um impacto negativo na manutenção de suas línguas e culturas, bem como na saúde (inclusive mental) das pessoas indígenas e na dignidade e identidade individual e coletiva indígena.

De acordo com os especialistas da ONU, em todo o mundo cada vez menos crianças estão aprendendo suas línguas indígenas mesmo quando seus pais e familiares ainda falam as línguas. As ações estatais e as escolas têm um significativo papel nesse diagnóstico. Também pesam fatores sociais e a discriminação da sociedade não indígena que fazem com que as línguas indígenas sejam percebidas como carentes de utilidade na sociedade majoritária e pelos próprios Estados. O estudo destaca a importância do compromisso também das comunidades indígenas com a proteção de suas línguas e revela que:

    “Infelizmente, existem poucos exemplos de promoção e revitalização de línguas. Contudo, onde eles existem eles em geral envolveram povos indígenas e os Estados trabalhando em parceria para proporcionar o apoio necessário, inclusive com o reconhecimento oficial de línguas indígenas como línguas nacionais, (…) fundos para imersões em línguas indígenas e/ou para educação bilíngue para crianças e adultos, meios de comunicação em língua indígena, o uso de línguas indígenas em procedimentos oficiais (inclusive judiciais e semi judiciais), com recursos destinados à tradução e interpretação, apoio para publicações em línguas indígenas, apoio para sistemas educacionais culturalmente sensíveis e coordenado por indígenas, campanhas públicas de conscientização e alocação de fundos para a revitalização linguística.” (para.41, tradução livre e grifo meu)

O estudo ainda traz dados de pesquisas que demonstram que uma educação com imersão linguística indígena traz melhores resultados, sem prejuízo ao aprendizado das línguas nacionais. Os peritos da ONU ressaltam que a estratégia da UNESCO para educação se guia em princípios que incentivam o uso da língua materna e uma educação bilíngue ou multilíngue, e essa é uma tendência para a educação intercultural em geral e não apenas indígena.

Em preparação à Conferência Mundial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 2014 também foi publicado um outro estudo da ONU que afirma que a educação deveria levar em consideração o conteúdo, valores e conhecimentos das culturas indígenas tal como aqueles do resto da sociedade sendo portanto as línguas indígenas importante recursos pedagógicos. De acordo com o estudo:

    “O uso de línguas indígenas e a inclusão de conhecimentos indígenas no currículo (das escolas) aumentaram o interesse das famílias e dos estudantes em suas histórias e em suas atuais e futuras oportunidades de aprendizado.” (p.7 Thematic Paper, Education and Indigenous Peoples: Priorities for Inclusive Education)

A Relatoria entende que, ainda que pontualmente em alguns casos específicos e isolados, o Brasil apresenta iniciativas em cooperação com comunidades e professores indígenas que se encaixam nesse reconhecimento de esforço estatal para a proteção de línguas e culturas indígenas.

De fato, ainda em 2015, a Funai e o Ministério da Cultura receberam a visita da Diretora Geral da UNESCO que garantiu a continuidade do apoio e elogiou o programa brasileiro de documentação de línguas e culturas indígenas e sua relevância para o combate à extinção de línguas indígenas, que são consideradas de interesse do patrimônio da humanidade.

Por isso, o PL 5954/2013 reflete uma demanda latente dos povos e comunidades indígenas com relação a uma educação efetivamente diferenciada e que é foco de significativa atenção internacional. A alteração da LDB tal como proposta permitirá com que experiências inovadoras e mais adequadas de garantia do uso das línguas maternas na educação básica, profissionalizante e superior, bem como do respeito aos processos próprios de aprendizagem e avaliação se expandam e se consolidem em todo o país. A medida traz efeitos concretos para os indivíduos e as comunidades indígenas, inclusive no enfrentamento à discriminação racial.

Apesar da sua relevância para o cumprimento do dispositivo constitucional que garante o direito ao uso das línguas indígenas nas escolas indígenas (artigos 210 e 231), e para enfrentar a ameaça de desaparecimento de línguas indígenas no Brasil, a Relatoria nota que o veto presidencial não considerou devidamente as análises técnicas especializadas da Funai e do MEC (Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena) e concluiu por uma suposta ameaça ao interesse público.

A Relatoria chama a atenção do Governo para a necessidade de se aprofundar de maneira dialogada com os povos indígenas sobre os diversos entendimentos acerca do seriam relevantes interesses públicos. Isso porque, no caso de medidas governamentais que afetam povos indígenas, sua educação, sua vida, sua saúde, seus projetos de vidas, suas terras e demais direitos, frequentemente, parece haver um descompasso injustificado com relação ao entendimento protetivo de direitos fundamentais dos povos indígenas frente a outros interesses. Assim, há iniciativas legislativas e executivas pautadas por entendimentos ainda frágeis e parciais do termo “relevante interesse público” para fins de demarcação de terras indígenas, de exploração de recursos minerários e hídricos, e ou com impacto sobre o direito de usufruto exclusivo dos povos indígenas.

Nesse ponto, destaca a urgência de pautar a implementação do direito de consulta, previsto na Convenção 169 da OIT, no âmbito do Executivo quando da elaboração de propostas normativas, bem como do Legislativo como determina a lei.

Isso porque, não basta que a Presidência da República, os Ministérios e a Funai se manifestem contrários aos projetos de lei e às propostas de emendas constitucionais que violam direitos indígenas. É preciso que o posicionamento de defesa de direitos indígenas se manifeste em ações concretas como na aprovação de leis favoráveis a exemplo do PL 5954/2013, da aprovação de um novo estatuto dos povos indígenas, da criação de um conselho nacional com poderes deliberativos, da proposição de ritos legislativos para a garantia da consulta livre prévia e informada, entre outros. Tudo isso sob o risco de uma continuada omissão fazer retroceder os avanços no campo dos direitos humanos para o Brasil.

A propósito, a proteção de línguas indígenas e a garantia da educação escolar indígena diferenciada, para além de ser um direito constitucionalmente garantido, é um compromisso já antigo e bastante reconhecido do Brasil em âmbito nacional e internacional. Por isso, o veto ao PL 5954/2013 se contradiz com as políticas em curso e os recentes anúncios de fortalecimento da educação escolar para os povos indígenas feito pela Presidenta Dilma na I Conferência Nacional de Política Indigenista (2015).

Além disso, contraria os dispositivos da Convenção 169 da OIT (art. 07, 26, 27, 30) que tratam do direito à educação e especialmente do dever do Estado de preservar e promover o desenvolvimento e a prática das línguas indígenas (art.28). Contraria também a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas (art. 12. 13. 14, 21), os compromissos assumidos na I Conferência Mundial sobre os direitos dos povos indígenas (2014) e com a educação e a cultura no âmbito da UNESCO de um modo geral. E se opõe às mais recentes reivindicações nacionais também gerais para o respeito a escolas mais autônomas, de qualidade e com compromisso com uma educação que faça sentido para o desenvolvimento humano, inclusive na sua interculturalidade, tal como recomenda a UNICEF e a UNESCO e se refletiu nos Objetivos do Milênio e na atual Agenda 2030.

Pelo exposto, a Relatoria de Direitos Humanos e Povos Indígenas reitera o pedido das organizações e especialistas indígenas e indigenistas para que a Presidência da República reveja sua posição de veto ao PL 5954/2013, considere os pareceres técnicos elaborados, consulte as instâncias de representação nacional indígena, e continue investindo no fortalecimento das políticas específicas e diferenciadas para povos indígenas para fazer jus à posição de reconhecimento internacional até então colocada.

* Por Erika Yamada, Relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil

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