A elevada concentração da propriedade dos meios de comunicação na América Latina e no Caribe está na mira da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que recentemente abriu uma consulta pública para conhecer melhor a legislação de cada país e propor mecanismos para evitar ou reverter a formação de monopólios ou oligopólios.
“Um dos pressupostos da democracia é o pluralismo político, a diversidade de vozes”, explica o advogado e jornalista uruguaio Edison Lanza, relator especial para a Liberdade de Expressão da entidade. Em passagem pelo Brasil, Lanza conversou com CartaCapital e criticou a letargia do País em criar medidas concretas para assegurar a diversidade na mídia.
CartaCapital: Por que rediscutir os marcos regulatórios das comunicações?
Edison Lanza: Na América Latina e no Caribe, há um elevado grau de concentração da propriedade dos meios. Poucas mãos controlam a maior parte das frequências, sobretudo dos meios audiovisuais, mas também há monopólios e oligopólios nos escritos. Isso tem implicações no processo democrático, pois um dos pressupostos da democracia é o pluralismo político, a diversidade de vozes. A Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2000, diz claramente que a formação de monopólios ou oligopólios de comunicação atenta contra a democracia.
Em uma sociedade democrática, devem conviver atores públicos, comunitários e privados. E o Estado tem legitimidade para criar instrumentos para garantir isso. Há uma clara necessidade de incluir mais vozes. O impasse é que os países do continente tentam regular um sistema que existe desde o surgimento do rádio e da televisão, entre os anos 1930 e 1950. Com uma peculiaridade: esse sistema se estruturou de forma desregulada, favorecendo o setor privado.
CC: É inevitável, portanto, contrariar interesses nessa reordenação.
EL: Quando se tenta regular um sistema que já existe é natural haver conflitos. Mas vivemos um momento de transição dos meios analógicos para os digitais, e isso é uma grande oportunidade para garantir maior diversidade. Onde antes só poderiam existir quatro ou cinco canais, hoje é possível haver dezenas de outros. Agora, diante de uma situação consolidada de concentração de meios, que medidas são legítimas? É válido restringir a propriedade dos meios em poucas mãos? É válido coibir a propriedade cruzada, quando o mesmo grupo é proprietário de rádios, tevês e impressos? Muitos países buscaram regular melhor essas questões. Outros não fizeram muita coisa, preferiram manter como está.
CC: No Brasil, os proprietários dos meios de comunicação usam o argumento da censura para se opor a qualquer forma de regulação.
EL: Se o Estado não intervir em nada, prevalece a lei do mais forte. Basta ter dinheiro para acumular frequências, controlar um maior número de veículos, o que implica em concentração de poder. Na Guatemala, para citar um exemplo, um só ator, Ángel González, é proprietário de quatro emissoras da tevê aberta e 30 frequências de rádio. É um empresário com influência política enorme, tanto no governo quanto no Parlamento. Isso, de fato, torna mais complexa a discussão na América Latina.
Na Europa, primeiro foram estruturados os meios públicos, para depois regular a atuação privada. Mas também há propostas de regulação que ultrapassam a questão da propriedade e interferem no conteúdo produzido. Temos criticado várias imposições da nova lei do Equador. Sob a justificativa de regular o setor, os parlamentares criaram brechas para punir os meios de comunicação por seu conteúdo com multas, inclusive o conteúdo crítico ao governo. É um tema realmente delicado. A regulação pode servir tanto para incluir mais vozes, com espaço aos meios públicos e comunitários, quanto para criar mecanismos de censura disfarçados.
CC: Quais são os melhores exemplos de regulação dos meios?
EL: No Reino Unido, na França, na Suécia, há excelentes serviços públicos de comunicação, com autonomia e financiamento adequado. Essas nações também têm instrumentos legais para garantir o acesso dos meios comunitários. Também há os grupos privados, mas eles estão submetidos a certas regras para garantir a diversidade. Na América Latina, as iniciativas são mais recentes e fragmentadas. A nova legislação da Argentina tenta criar uma estrutura parecida com essa que descrevi, com a participação dos setores público, comunitário e privado, além de impor limites para a concentração dos meios por particulares.
CC: A Suprema Corte da Argentina validou a cláusula antimonopólio, mas até hoje o governo Kirchner é acusado de perseguir o grupo Clarín.
EL: Questiona-se que a legislação tem sido utilizada contra um único meio de comunicação. A regra deveria valer para todos, sem qualquer tipo de discriminação. Estamos monitorando de perto essa situação. No Uruguai, o Parlamento acabou de aprovar uma lei, após cinco anos de debates sobre o tema. É basicamente uma regulação da estrutura da propriedade, com mecanismos mais transparentes para a concessão de outorgas. Também há disposições para fomentar a produção de conteúdos de base nacional e para incluir os meios comunitários, além de uma regulação mínima de conteúdo, apenas para garantir a proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e punir discursos de incitação ao ódio.
CC: Nesse cenário, o Brasil está muito atrasado, não?
EL: De fato, o Brasil postergou a adoção de medidas concretas. Pelas denúncias que recebemos da sociedade civil, o País tem um sistema muito concentrado, sobretudo na tevê aberta. Há muitas rádios controladas por políticos e o setor comunitário permanece excluído. A legislação para as rádios comunitárias é deficiente, pois impõe limites de alcance e restringe o financiamento pela publicidade. O Brasil poderia avançar mais por meio de políticas públicas, que assegurem, por exemplo, a inclusão dos meios comunitários. Há um contrassenso na perseguição às rádios sem licença quando o objetivo é incluir mais vozes. Com a transição da televisão digital, também não há desculpa para não ampliar o número de atores, pois nem sequer é preciso mexer nos já existentes.
CC: A internet assegurou a inclusão de vozes alternativas aos meios tradicionais. Por outro lado, vemos a emergência de um forte discurso de ódio, sobretudo nas redes sociais.
EL: A internet foi construída para ser uma rede descentralizada, e logo se converteu num importante instrumento para a liberdade de expressão. Uma das características da rede é o enorme pluralismo, com barreiras de acesso muito baixas. Tanto que vimos a emergência de dessas vozes alternativas aos meios tradicionais. Temos de ser muito cuidadosos ao falar de regulação da internet para não interferir no projeto original da rede, marcada pela descentralização e diversidade. Se há a necessidade de regular algum conteúdo, precisa haver regras muito precisas. As normas internacionais já proíbem discursos de incitação ao ódio. O artigo 13.5 da Convenção Interamericana diz, textualmente, que “a lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.
As Nações Unidas têm uma metodologia para identificar essas expressões que incitam o ódio. Precisamos aprimorar os padrões de proteção aos direitos das mulheres, dos povos indígenas… Mas os Estados têm a obrigação de educar seus cidadãos, inclusive na promoção de valores na cultura digital. Não adianta só apostar na repressão, é preciso educar as pessoas para o exercício ético e responsável da liberdade de expressão.
* Texto publicado originalmente na edição 863 de CartaCapital, com o título "O real entrave às liberdades". É uma versão ampliada da entrevista concedida por Edison Lanza.