Fake news, memes e ataques com autoria de radicais ainda surgem nas redes sociais e tentam degradar a imagem de Marielle. “Como a memória dela não foi assassinada, eles tentam assassinar com esses símbolos”, diz pesquisadora.
A reportagem é de Beatriz Drague Ramos, publicada por Ponte, 14-03-2021.
No final de fevereiro deste ano um homem foi agredido por apoiadores do deputado federal Daniel Silveira (PSL–RJ) por estar carregando uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL) em frente à sede da Polícia Federal no Rio de Janeiro, onde o parlamentar apoiador de Jair Bolsonaro (sem partido) estava preso após ameaçar ministros do Superior Tribunal Federal (STF).
O homem agredido, que tinha a perna imobilizada e estava de muletas, foi enforcado com um “mata-leão” e insultado por apoiadores do deputado federal, que teve sua prisão domiciliar decretada neste domingo (14/3).
Em janeiro, em um curto período de apenas uma semana, três parlamentares do PSOL representantes do movimento negro e LGBTQI+ sofreram ataques, ameaças e até atentados com disparos de arma de fogo. A casa da covereadora Samara Sosthenes, 33, que se identifica como travesti e integrante do mandato Quilombo Periférico do PSOL, eleita na Câmara dos Vereadores da capital paulista, foi alvo de um atentado a tiros em 29/1. Três dias antes (26), dois disparos de arma de fogo atingiram a casa da covereadora negra e intersexo Carolina Iara (PSOL).
No mesmo dia, a vereadora Erika Hilton (PSOL) registrou um boletim de ocorrência por ameaça. A primeira mulher trans a ocupar um cargo na câmara municipal foi buscada em seu gabinete por um homem autodenominado “garçom reaça”, ele portava uma bandeira e máscara com símbolos cristãos.
Além dos ataques físicos, os assédios virtuais também são recorrentes. O estudo “A violência política contra mulheres negras” de dezembro de 2020, do Instituto Marielle Franco, mostra que 78% das participantes relataram ter sofrido algum tipo de violência virtual, o maior índice entre as práticas mencionadas. Em seguida, 62% das mulheres negras disseram que sofreram violência moral e psicológica e 55% foram acometidas por violência institucional.
Dentre as variações destas violências virtuais estão o recebimento de mensagens machistas, misóginas, LGBTQI+fóbicas e racistas nas redes sociais e por e-mail, ofensas e invasões em reuniões virtuais ou lives.
A desinformação e os ataques levaram o Instituto Marielle Franco, organização fundada pela família de Marielle a encaminhar um pacote de leis a mais de 70 parlamentares, com o objetivo de enfrentar a violência política, além disso, um projeto cria no dia 14 de março o Dia Marielle Franco de Enfrentamento à Violência Política contra mulheres negras, LGBTQIA+ e periféricas.
Anielle Franco, jornalista e irmã de Marielle, reitera que o Instituto Marielle Franco trabalha no sentido contrário às manifestações de ódio. “O Instituto Marielle Franco é uma parte do legado da Marielle e legitimamente é uma organização que tem honrado os valores dela. No dia 14 muitas pessoas vão nos dar carinho, apesar de muitas outras ainda serem contrárias a tudo o que a Marielle representa e as nossas ideias e nossos posicionamentos”, diz.
Ainda assim, a jornalista crê que o diálogo é a melhor solução contra a desinformação. “Seguimos acreditando que ter empatia e diálogo com essas pessoas ainda é a maior maneira de agir, não disseminamos ódio, não agimos com ameaças, com xingamentos, pelo contrário, trabalhamos enquanto tem muito ódio sendo destilado em cima da memória da minha irmã. Seguimos firmes, resistindo, como boa mulher preta de favela e vamos lutar sempre, enquanto houver força dentro da família, dentro de nós, para carregar esse legado e a memória da Marielle”.
Os homicídios de Marielle Franco e Anderson Gomes, ocorridos em 14 de março de 2018, completam 3 anos neste domingo e ainda deixam no ar as perguntas: Quem mandou matar? E por quê? Às razões objetivas do homicídio ainda estão sendo investigadas, mas é sabido que o ódio a o que Marielle Franco representava e dava voz está por trás deste crime.
Por isso, após morta fisicamente, uma sucessão de conteúdos falsos e tentativas de culpabilização de sua própria morte começaram a circular na internet.
Logo no dia seguinte ao seu assassinato a desembargadora carioca Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, publicou no Facebook um texto junto a uma imagem na qual afirmava que a mulher da foto era Marielle.
No post ela ligava a vereadora ao Comando Vermelho, facção do crime organizado do Rio de Janeiro. A mentira também foi compartilhada pelo então deputado federal Alberto Fraga (DEM–DF) e por organizações da direita como o Movimento Brasil Livre (MBL). Acusada de calúnia, na última semana a desembargadora foi absolvida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Logo no dia seguinte ao seu assassinato a desembargadora carioca Marília Castro Neves divulgou mentiras sobre Marielle Franco. Imagem: Reprodução redes socais.
Na visão da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora do Departamento de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Bath, no Reino Unido, o ódio a Marielle faz parte de um movimento anti-democrático muito maior, ligado a grupos extremistas. “Assim como querem acabar com a imagem da Marielle, eles querem acabar com uma ideia de saúde pública promovida pelo SUS em relação à vacina, por exemplo. Quer dizer, é um conjunto anti-democrático que representa uma grande parte da população que se organiza por mídias sociais e que não conseguimos mais nenhuma forma de diálogo ou conversa. Como a memória dela não foi assassinada, eles tentam assassinar e contra-atacar com esses símbolos”.Rosana ainda aponta que as manifestações de ódio provocam muitos impactos negativos à democracia. “Para a democracia é muito negativo, porque temos parte da população que reage de forma relativamente homogeneizada de apoio ao presidente de extrema-direita nos grupos organizados no WhatsApp”.
Segundo a antropóloga, um dos efeitos é a falta de justiça no caso Marielle. “A investigação é fundamental para qualquer perspectiva dos direitos humanos, que junto ao direito à livre expressão são condicionantes de qualquer democracia. Uma democracia não se faz só com direitos eleitorais, ela se faz com direitos civis, com a manutenção de direitos de cidadania. Então existe toda uma parte, eu diria 50% dos aspectos que compõem uma democracia, para além da eleição, que está danificada, e uma imensa parte da população não quer justiça”.
Para ela, o principal desafio é persistir internacionalmente para que haja resolução para as mortes de Marielle e Anderson. “O grande desafio é continuar a pressão internacional pela memória e pela justiça de Marielle”.
No olhar de David Nemer, antropólogo e professor do Departamento de Estudos de Mídia da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, Marielle representa a interseccionalidade de tudo o que a extrema-direita odeia. “Uma mulher preta, periférica, membro da comunidade LGBTQI+, a favor dos direitos humanos, ela representa tudo aquilo que o Brasil vem ganhando em relação à inclusão e à diversidade”.
“Ela não era uma prefeita ou uma deputada federal, era uma vereadora que fazia muito pela sua comunidade, essas características são tudo aquilo que a extrema-direita demoniza. Toda vez que há avanços dentro dessa agenda que ela apresenta ,até hoje a extrema-direita se une contra ela”, complementa David.
Ainda assim, o pesquisador não observa um crescimento nestas demonstrações, mas sim uma movimentação em ondas. “Essas manifestações vêm em ondas, depende muito do que acontece para eles voltarem a atacar, não é algo constante. Um caso recente que fez com que esses grupos voltassem a atacar a Marielle foi a questão da prisão do Daniel Silveira, que ficou conhecido por quebrar a placa da rua Marielle Franco, isso serviu como um gatilho no WhatsApp bolsonarista para falar que enquanto a ‘esquerda protege mulher de bandido’ a polícia prende um patriota”.
David ainda chama a atenção para o perigo das expressões de ódio, ainda que virtuais. “Essas manifestações são perigosas porque elas demonizam ainda mais corpos de mulheres pretas, que são constantemente marginalizados, assassinados, corpos LGBTs. O Brasil é o país que mais mata LGBTs, então isso amplifica todo esse ódio que é presente na sociedade brasileira e isso é perigoso, porque essas ações no WhatsApp de bolsonaristas acabam sendo materializadas na vida real. Essa violência de discurso sai do mundo virtual e vai para o mundo real e isso é muito perigoso”.
Apesar dos riscos, o antropólogo é otimista quanto ao simbolismo de Marielle. “Sou esperançoso de que a imagem da Marielle será a imagem do que ela realmente representa, não as fake news. Eu mantenho mais a esperança do simbolismo que ela representa, do que um pessimismo, até porque hoje, nas redes, tirando as pessoas da extrema direita, falam com muito carinho da Marielle, com muita esperança”.
Matéria extraída do Portal IHU-UNUSINOS