por Gabriel Brito, da Redação do Correio do Cidadania*
O breve 2019 acumula acontecimentos trágicos que perdurarão na memória coletiva por muito tempo. Sobre a dura conjuntura, o Correio publica entrevista com a deputada federal Áurea Carolina, um dos principais nomes das novas representações sociais que ampliam seu espaço na política. Além do 8 de março e lutas das mulheres que marcam os últimos tempos, a deputada comentou as novidades na investigação do assassinato de Marielle Franco e o brutal atentado perpetrado por dois adolescentes que entraram armados na escola Raul Brasil.
“É muito triste ver o impacto concreto de discursos e condutas irresponsáveis de agentes públicos, que levam à sensação generalizada de insegurança, quando sabemos muito bem que o problema da violência só será superado com a promoção de políticas sérias de segurança cidadã e direitos sociais, baseadas em evidências, não em pânico social e moral que os grupos de extrema-direita e conservadores têm alastrado”, explicou.
Socióloga e cientista política de formação, Áurea reforça a necessidade de a sociedade brasileira reconstruir caminhos democráticos para sair do atual ciclo de violência e arbítrio, que inclusive ameaçam a própria estabilidade institucional. Ainda mais por estarmos diante de um governo que parece envolvido até o pescoço com o crime organizado.
“É um governo de desmanche da estrutura de garantias sociais no Brasil. E temos um presidente que lamentavelmente comete inúmeras irresponsabilidades, no discurso, na utilização das redes sociais pra propagar mentiras e provocar confusões na sociedade, em condutas incompatíveis com o cargo. É um governo que está cada vez mais indefensável. Há um constrangimento notório na própria base”, resumiu.
Áurea Carolina também comentou as manifestações do último 8 de março e o atual momento das lutas feministas, que acabaram de redundar na decisão do Congresso argentino de estabelecer a paridade entre homens e mulheres para a câmara e o senado do país. “Na medida em que houver uma presença mais ativa das mulheres na construção das esquerdas, nos partidos, nos espaços de poder, com compromisso de tais instituições, avançaremos muito mais”.
A entrevista completa com Áurea Carolina pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Impossível ignorar o atentado na escola de Suzana que matou 8 jovens. O que você pode comentar a respeito, ainda que não haja total clareza das motivações do ocorrido, inclusive em relação à conjuntura que vivemos?
Áurea Carolina: É uma tragédia que nos abala muito, relacionada ao momento político em que vivemos no Brasil, onde há a proliferação dos discursos de ódio, uma legitimação do uso da violência, do uso ostensivo de armas, inclusive da parte de um governo que deveria defender a cidadania e a vida das pessoas.
Está instalado no Brasil um governo antidemocrático, que faz apologia à violência e ao uso indiscriminado de armas, o que certamente tem influência sobre o imaginário social. Os dois jovens que cometeram esse massacre e promoveram uma tragédia não agiram apenas por impulso. Contaram com respaldo simbólico que cada vez mais ocupa a cena pública no Brasil.
Por isso é muito triste ver o impacto concreto de discursos e condutas irresponsáveis de agentes públicos, que levam à sensação generalizada de insegurança, quando sabemos muito bem que o problema da violência só será superado com a promoção de políticas sérias de segurança cidadã e direitos sociais, baseadas em evidências, não em pânico social e moral que os grupos de extrema-direita e conservadores têm alastrado.
Convivemos com tragédias diárias e está difícil lidar com a conjuntura, mas vamos resistir de forma incansável na defesa de valores democráticos.
Correio da Cidadania: Ainda sobre a violência armada, completamos um ano da morte da Marielle Franco, com prisões e novidades na investigação da polícia. Como você observa as informações divulgadas nesta semana sobre a morte de Marielle?
Áurea Carolina: A elucidação parcial do crime, chegando a dois dos assassinos, é um passo muito importante. Tardio, pois demorou muito tempo, e ainda insuficiente, porque é preciso identificar os mandantes desse crime premeditado, com meses de antecedência conforme a própria investigação. Mapearam a agenda e ações da Marielle, e não agiram apenas por ódio. É um crime premeditado que envolveu muitos recursos, caros. Um carro que nunca foi achado, uma arma que nunca foi achada… É um crime que tem fundamentos de poder político e econômico e que precisa ser elucidado à sociedade brasileira. Chegar aos mandantes é fundamental.
No marco de um ano da execução, ficamos mobilizadas, clamamos por justiça e lutamos pela agenda que a Marielle conduzia, de segurança cidadã, antipunitivista, de promoção de direitos sociais, antimachista, antirracista, enfim, o conjunto de pautas que ela encarnava tão bem, com sua coragem, luta e alegria de viver.
É uma semana difícil e a sequência de tragédias aumenta o apelo de urgência, precisamos de medidas imediatas para transformar a sociedade brasileira. Não queremos nenhuma de nós a menos, não queremos mais mortes, precisamos de uma sociedade pacificada, onde as pessoas possam viver sua vida e desenvolver seus potenciais e seus desejos.
Correio da Cidadania: Considerando que dois dias antes de sua chegada ao público o presidente Bolsonaro fez postagens agressivas à família do jornalista que publicou matéria no Globo sobre os avanços na investigação da morte de Marielle, o que incluiu fatores no mínimo inusitados de proximidade de Bolsonaro com alguns milicianos, como enxerga as atitudes do governo em relação à investigação?
Áurea Carolina: É um governo sustentado em notícias falsas e desvios de foco do que deveriam ser suas responsabilidades: a construção de políticas públicas para a população brasileira. É um governo de desmanche da estrutura de garantias sociais no Brasil. E temos um presidente que lamentavelmente comete inúmeras irresponsabilidades, no discurso, na utilização das redes sociais pra propagar mentiras e provocar confusões na sociedade, em condutas incompatíveis com o cargo.
É um momento difícil também porque este governo não tem legitimidade. Foi eleito em campanha fundada em notícias falsas e financiada de forma ilegal. É a conjuntura que nós temos, mas vamos continuar com muita firmeza, fazendo as devidas denúncias, criticando governantes alçados ao poder com base na desinformação e na cultura do pânico social, que investem no medo como forma de controle da população…
As informações que apontam alguma relação entre familiares de Bolsonaro com os assassinos da Marielle precisam ser investigadas e esclarecidas devidamente. Cabe a nós continuar a lutar para que a evidência sobre os mandantes traga uma mudança sobre a sociedade brasileira, para que certas coisas não aconteçam nunca mais.
Precisamos superar essa fase e reconstruir a retomada da democracia brasileira.
Correio da Cidadania: Apesar de sua atuação na Câmara federal ter apenas começado, é possível sentir um enfraquecimento, ainda que precoce, do governo e sua base, no sentido de tocar em frente as reformas do que você mesma definiu como “desmanche da estrutura de garantias sociais”?
Áurea Carolina: É um governo que está cada vez mais indefensável. Há um constrangimento notório na própria base. É difícil justificar tantas situações complicadas, em que não há o que se defender.
Mas temos de continuar trabalhando para que essas reformas e outras medidas que estão chegando no Congresso sejam barradas. E isso requer muita mobilização social. Não será apenas com a indignação de uma parte da sociedade que deteremos os retrocessos.
Precisamos de organização nas bases e territórios, precisamos nos corresponsabilizar nas lutas, é um trabalho que não tem fim. Dentro da institucionalidade, os que têm compromissos com tais lutas precisam vocaliza-las, mas é principalmente fora da institucionalidade que criaremos as condições de reverter a situação. Não vai ser de uma hora para outra, será na construção de capacidades democráticas entre as pessoas comuns, no cotidiano.
Correio da Cidadania: Como você enxerga a atualidade das oposições progressistas e de esquerda no Brasil e o que comenta da eleição de Rodrigo Maia para presidente da Câmara, com uma grande quantidade de votos, inclusive de alguns ditos de “esquerda”?
Áurea Carolina: A questão das esquerdas precisa extrapolar a institucionalidade. Como produzir no cotidiano mais integração, colaboração entre os que somos do mesmo campo, progressista e popular? Essa é a grande dificuldade. Sem essa perspectiva continuaremos a perder espaço. As eleições mostraram a saturação de um modelo, do projeto democrático-popular petista e seu modus operandi dentro do meio político. A população não aceita mais essa lógica anterior. Precisamos reconstruir a partir de outras bases.
O PSOL teve um bom crescimento parlamentar, mas ainda é muito pouco diante do que precisamos enfrentar. E só vamos conseguir com mais proximidade e exercícios generosos de colaboração, entre as esquerdas, partidos e movimentos mais tradicionais e históricos, e também com os novos grupos, coletivos e movimentos sociais autônomos, que têm se multiplicado.
A nossa capacidade, ou incapacidade, de diálogo e cooperação aqui no Congresso é reflexo de como incidimos externamente na articulação de tantas lutas. Dissociar tais questões é um erro e mostra que vivemos a decadência de um projeto que deixou de responder democraticamente à cidadania e de investir na participação popular como método indispensável à ampliação da democracia brasileira.
São muitas questões, a resposta não virá só de um partido ou bloco. Por outro lado, a criminalização das lutas e das esquerdas concorre. A produção de desinformação também entra no cenário. São questões que interagem e precisamos equilibrar na avaliação, para não fazermos uma crítica injusta em relação ao potencial e capacidade real das esquerdas de movimentar a sociedade.
Não podemos desconsiderar a artilharia que se voltou contra nós, e a execução da Marielle é simbólica: querem nos impedir de avançar no nosso trabalho.
Precisamos corrigir nossas práticas, no sentido de torná-las mais transparentes e democráticas, mas também enfrentar a violência incessante dos grupos conservadores que querem manter seus privilégios a qualquer custo.
Correio da Cidadania: Em relação ao final de sua última resposta, em entrevista recente o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes disse que, resumidamente, a extrema-direita apresentou um projeto. Já as esquerdas, neste período de crise estrutural do capitalismo que já passa de uma década, não o fizeram. O que você pensa?
Áurea Carolina: Acho que existem vários projetos, mas falta um elo mais compreensível, que dialogue com a linguagem comum das pessoas. Tem muitas versões de projetos de sociedade. Temos muito mais em comum do que o contrário. Tal questão precisa ser tratada por nós com mais tranquilidade.
Aquilo que a gente tem de afinidade deve ser ressaltado, transformado numa narrativa sensível à maioria da população. Há vários esforços em andamento e devemos potencializar tal trabalho.
Também vivemos uma transição histórica e é questão de tempo, acredito, que consigamos retomar as instituições democráticas, a fim de torná-las porosas à cidadania. É uma questão da qual trato sempre: como fazer com que lugares tão encerrados em si mesmos se tornem mais voltados à população. É um trabalho permanente e vejo avanços na agenda pública, em termos de elaboração, e temos de continuar trabalhando.
Correio da Cidadania: Voltando alguns dias, ao 8 de março, o que você pode contar do que viu de perto nas manifestações de rua e o que a luta das mulheres tem representado na atual conjuntura?
Áurea Carolina: Eu participei do ato em Belo Horizonte, foi lindíssimo, histórico, gigante, a mulherada em peso na rua, um ato alegre, festivo, de muita força, apesar de todas as dores com o atual momento político do Brasil e do mundo. Havia muitas mulheres jovens, juventude LGBTQ, também as mulheres mais velhas, precursoras das lutas feministas, vários movimentos diversos. Houve a presença do carnaval de rua, com blocos feministas levando o ato em frente, cantando, dançando…
Ficou um sentimento de que estamos juntas. Penso que através da construção das mulheres poderemos curar nossa democracia. Todo o processo das esquerdas muitas vezes dá errado porque ainda há uma cultura muito machista e racista de não compartilhamento do poder. Na medida em que houver uma presença mais ativa das mulheres na construção das esquerdas, nos partidos, nos espaços de poder, com compromisso de tais instituições, avançaremos muito mais.
Estamos aí, ativas na luta desde sempre, mas os espaços de poder estão praticamente fechados para a maioria de nós. Ocupar um espaço de poder é um desafio muito grande e a luta política deve acontecer em todos os lugares, inclusive nas instâncias decisórias do sistema. E isso esteve presente no 8 de março: mulheres ocupando o espaço com força, com respeito e condições de entrarem em tais espaços.
Mas não é uma agenda só das mulheres, precisa ser um compromisso da sociedade. Foi muito emocionante para mim poder estar no ato, ver várias pessoas com faixas e cartazes da Marielle. Portanto, foi um ato pra dizer que nossas vidas têm valor. E também tivemos outras mensagens, como em relação ao crime da Vale em Brumadinho, a essa conjuntura, à justiça socioambiental, que também faz parte da agenda das mulheres…
Foram muitas questões que precisam ser tratadas pela sociedade inteira, de forma séria, caso contrário continuaremos a viver no mundo de ganância, destruição, ódio, exclusão… O 8 de março sempre é um momento muito potente e conseguimos levar às ruas a mensagem de encorajamento e recarga de energias pra atravessar o ano.
Correio da Cidadania: Apesar de ainda ser um número baixo, houve um aumento da bancada de mulheres no Congresso. Como você analisa essa bancada, em toda sua diversidade política, ideológica, de valores, à luz da decisão do congresso argentino, de já nesta eleição legislativa estabelecer paridade de cargos entre homens e mulheres?
Áurea Carolina: A bancada é muito heterogênea, com esforço da maior parte das colegas de diálogo, cooperação, por mais mulheres no poder… Agora mesmo há uma atividade na Câmara por iniciativa da Secretaria da Mulher, com presença de outras entidades, de discussão não só em defesa de cotas para candidaturas como aplicação de recursos para campanha eleitorais, crítica ao uso manipulador da mulher em candidatura laranja e a necessidade de avançarmos à paridade de gênero entre homens e mulheres no sistema político, com equilíbrio real para construirmos debates e políticas públicas, com controle igualitário sobre o Estado.
É um avanço importante chegamos a 77 deputadas, mas ainda é pouco, o Brasil ainda ocupa uma das últimas posições da América Latina e do mundo em termos de participação feminina. É inaceitável um país com tanto histórico de lutas feministas não pode conviver com tamanha discrepância.
É uma luta grande, mas as estruturas da sociedade continuam se movendo e seguimos na resistência, pois nossa caminhada vem de longe e tem compromisso histórico, transformador. Continuemos com as lutas em nossas comunidades, quebradas, escolas, onde estivermos, pois é importante politizar a vida, a única maneira de termos uma democracia que se sustente no tempo e vire, de fato, uma forma de vida, de valores e relações.
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Publicado originalmente no site do Correio da Cidadania. Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
Foto de capa: Divulgação/Áurea Carolina