Reproduzimos na íntegra depoimento angustiante de Pe Raimundo Rocha, comboniano brasileiro que vive no Sudão do Sul. Sofrendo sob fortes conflitos em função da guerra civil, a população sofre e pede a solidariedade mundial.
Caros amigos e amigas, feliz ano novo, muita paz! Escrevo a vocês com mais notícias sobre a situação no Sudão do Sul nesse início de ano, especialmente aqui da missão de Leer. Já se passaram quase vinte dias desde que os conflitos se iniciaram em Juba. Ficou bem claro que se trata de uma crise política profunda que ganhou um tom forte de tribalismo. Isto porque os dois principais líderes envolvidos pertencem às duas maiores tribos do país. Mas não se iniciou como um conflito tribal. É uma briga por poder que vem de muito longe e quem paga caro é a população inocente e desprotegida, também muitas vezes manipulada. O exército se dividiu entre as tropas leais ao vice-presidente deposto (os rebeldes) e as tropas do governo.
Os conflitos se espalharam, há saques e destruição
Os conflitos intensos diminuíram e a situação em Juba está mais calma, porém, os conflitos se espalharam por outras regiões. Não são intensos, mas de grande preocupação. Até o momento fala-se de mais de mil mortos e cerca de 180 mil que deixaram suas casas e se refugiaram nas bases da ONU, igrejas ou no meio do mato. Muitas dessas pessoas, entre as quais muitas mulheres e crianças, tem acesso a pouca comida, não tem água e o risco de adoecerem é muito grande. Nas cidades onde houve conflitos o número de mortos é alto, muito maior o de feridos e refugiados. Houve saques e muita destruição. Não se sabe quando os refugiados poderão voltar para as suas casas. Temem serem mortos pelos rebeldes ou por membros de tribos “rivais”. As ONGs retiram seus funcionários estrangeiros. O mesmo fizeram muitos países cujos cidadãos trabalhavam no Sudão do Sul.
Os missionários de várias congregações continuam com o povo e com a Igreja local.
A situação no geral é tensa e de muita ansiedade e incertezas. A nossa região está sob domínio dos rebeldes, as tropas que são leais ao vice-residente deposto. Fala-se que milhares de jovens se ofereceram como voluntários para lutar contra o governo. Estariam marchando com os rebeldes rumo a capital Juba para dominá-la. Um grupo de mais de cem jovens passou em frente à nossa igreja no domingo enquanto alegremente ia se alistar para eventuais combates.
Os rebeldes dominaram a nossa região, que é rica em petróleo do qual a economia do país depende em 98%. É claro que o governo vai enfrentar os rebeldes com unhas e dentes para recuperar a principal fonte de renda. De fato, o governo declarou nossa região como ‘estado de emergência’, o que muitos entenderam como uma declaração de zona de guerra. A boa notícia é que diminuíram os conflitos e os líderes políticos resolveram conversar e concordaram com o cessar fogo e fim das hostilidades. Mas uma coisa é o acordo no papel, outra coisa é parar os conflitos onde eles acontecem.
Situação na missão de Leer
Das maiores cidades da região sob domínio dos rebeldes, Leer é uma das poucas onde não houve conflitos. Quase toda a nossa Diocese de Malakal, com exceção da sede, está sob domínio dos rebeldes. Em Malakal pela primeira vez não puderam celebrar o natal. Aqui em Leer celebramos natal e ano novo em relativa paz. Os conflitos acontecem mais nas capitais ou onde há presença de tropas pró ou contra o governo. Em Leer, além do povo ser de uma única tribo, dá a entender que estão do lado dos rebeldes. Porém, fomos afetados de outras formas e seguimos temerosos e ansiosos com essa situação de medo e incertezas. Leer é por natureza uma região isolada.
Com os conflitos o único acesso pelo Rio Nilo foi interrompido pelos rebeldes. Pelo ar, a única empresa área que voava para essa região suspendeu os voos. A ONU pode fazer voos humanitários, mas não é tão fácil. Por terra, a única estrada que liga Leer a Juba continua intrafegável, com pontes destruídas pelas chuvas, e passa pela zona de conflitos com os Dinkas. Portanto, seria insegura. A estrada que liga Leer a Bentiu foi reaberta, mas um pouco insegura. Com isso ninguém chega e ninguém parte. O mesmo acontece com alimentos e outros bens. Os produtos disponíveis no mercado diminuem e aumentam de preço. Os comerciantes vivem em constante medo de saques.
Os trabalhos pastorais foram seriamente comprometidos. Essa é a época da seca em que se tem acesso a algumas áreas mais isoladas, mas por causa da insegurança não podemos ir. Há comunidades que não recebem nossa visita pastoral há mais de ano. A assembleia provincial dos combonianos foi suspensa. Resolvemos não deixar a missão de Leer neste momento difícil e ficar junto ao povo. Nossa presença ‘inibiria’ possível violência contra o povo e ‘evitaria’ saques na missão.
Um desabafo!
Nós missionários combonainos e combonianas em Leer, como em todo o Sudão do Sul, sentimos uma profunda tristeza por toda essa situação. Lamentamos não poder visitar todas as comunidades. Lamentamos profundamente a incapacidade dos líderes de resolverem os seus conflitos políticos através do diálogo. Na verdade, a grande maioria dos líderes são militares rebeldes que combateram na guerra civil por mais de 21 anos. Possuem pouca experiência de diplomacia e administração. Não é surpreendente a forma como estão agindo.
Lamentamos ainda que a nação mais jovem do mundo, com apenas dois anos e seis meses de independência e uma das mais pobres do mundo, tenha que passar por toda essa situação dolorosa de sofrimento, violência e morte. Os pobres agora estão mais pobres e mais vulneráveis ainda. A esta altura a luta de muita gente é por sobrevivência e proteção.
A decepção com as lideranças políticas é de fato muito grande por parte de toda a população. Porém, temos esperança. A fé no Deus da vida e da paz nos sustenta e nos guia. A fé do povo é também muito grande. O povo sul sudanês é conhecido por sua resiliêcia. Tem uma capacidade muito grande de se recuperar de conflitos e tragédias. A igreja tem sido protetora, guia e mediadora nessa crise. A ONU tem prestado um grande serviço humanitário e de segurança junto com outras organizações. A mídia ora ajuda, ora atrapalha com informações que são apenas rumores.
As negociações entre os líderes foi iniciada na Etiópia. Esperamos por resultados urgentes, verdadeiros e eficientes para o fim da crise. Nesse momento o que mais nos interessa é o fim dos conflitos e o restabelecimento da paz. Agradecemos a solidariedade, orações e apoios recebidos de muita gente. Isso tem nos ajudado. Continuamente pedimos ao povo que intensifiquem as orações pela paz e reconciliação. A justiça é também muito necessária.
Reafirmo que em Leer estamos bem e peço mais uma vez que rezem por nós e pela paz e justiça no mundo.
Muito axé! Com estima,
Pe. Raimundo Rocha, mccj – Missão de Leer, Sudão do Sul