Após testemunhar execução brutal de pessoas próximas, Marguerite Barankitse passou a cuidar de crianças que perderam os pais em guerra civil entre tutsis e hutus no Burundi e se tornou referência mundial pelo impacto de seu trabalho.
Em outubro de 1993, quando a guerra civil explodiu em Burundi, país de 11 milhões de habitantes no leste da África, Marguerite Barankitse foi forçada a assistir ao massacre de 72 amigos hutus.
O conflito entre hutus e tutsis foi desencadeado naquele ano após a morte do presidente hutu Melchior Ndadaye e até hoje o país, palco de uma sangrenta guerra civil entre as duas etnias em 2006, ainda vive em clima de tensão por causa da polarização étnica.
Antiga colônia da Alemanha e da Bélgica, o Burundi é hoje uma das nações mais pobres do mundo.
Por ser de origem tutsi, Barankitse foi poupada na matança. Mas foi nesse momento que decidiu cuidar das 25 crianças deixadas órfãs pelo episódio, com a ambição de fazer nascer “uma nova geração” de burundineses tolerantes.
Assim, ela deu o primeiro passo para a criação da ONG Maison Shalom (Casa de Paz, naem tradução livre) – uma espécie de “império humanitário” que chegou a contar com maternidade, escola médica e outras instalações e ajudou mais de 30 mil crianças até 2015, quando o presidente Pierre Nkurunziza, hutu, ordenou o bloqueio das contas das diversas organizações fundadas por Barankitse em resposta a sua notória oposição política ao governo.
Hoje com 61 anos, a mulher de roupas coloridas e alegria contagiante é conhecida no Burundi como “mamãe Maggy”. À BBC Brasil, ela contou que “sempre (foi) uma rebelde”, considerada “louca” por amigos e vizinhos por criticar o ódio interétnico latente que alimenta conflitos no país desde sua independência da Bélgica, em 1962 – a exemplo do que ocorreu na vizinha Ruanda, onde o genocídio de 1994 matou cerca de 800 mil pessoas.
Barankitse foi professora de francês na cidade de Ruyigi, uma das cinco mais importantes do país, mas aos 24 anos foi suspensa de suas funções por criticar o que via como discriminação escolar contra alunos hutus. Além disso, desafiou os costumes locais e permaneceu solteira, mas adotou, cedo, sete crianças de ambas as etnias – órfãs da violência interétnica.
Para ela, isso foi uma maneira de “mostrar para o mundo que tutsis e hutus podiam sim viver juntos e em paz” e que “o problema não era étnico, mas de má governança”.
“Sempre disse que (a situação no país) era uma bomba-relógio e que era preciso fazer algo. Eu queria mostrar aos burundineses que é possível viver em coesão social.”
Massacre
A vida de Barankitse mudaria no dia 24 de outubro de 1993. Representantes da minoria tutsi começaram uma campanha sistemática de exterminação de hutusm em retaliação a ações similares cometidas por hutus contra tutsis – como os familiares de Maggy, todos assassinados.
A ONU estima que mais de 300 mil burundineses foram assassinados em oito anos de conflito – que só foi encerrado em outubro de 2001, com a assinatura do Acordo de Arusha.
A então mãe solteira de 38 anos se refugiou com seus sete filhos na paróquia local, onde trabalhava como secretária. Além de abrigo para ela e os filhos, Barankitse ainda escondeu ali 97 homens, mulheres e crianças – a maioria hutus.
“Mas não funcionou”, diz ela.
Despida, amarrada em uma cadeira e tratada como traidora, Maggy foi forçada a presenciar o assassinato dos adultos, entre eles sua grande amiga Juliette, uma tutsi que, por princípio, preferiu não abandonar o marido hutu.
O relato do episódio é o único que apaga o sorriso e enche de lágrimas os olhos de Maggy.
“Juliette me olhou e disse: ‘Maggy, você pode criar minhas crianças como se fossem tuas? Eu vou seguir meu marido’. Ela olhou os assassinos e me deu Lydia e Lysette. Lydia tinha 1 ano, Lysette 3 e meio”, recorda, mostrando uma foto recente das garotas, duas jovens sorridentes em uma paisagem do Canadá, onde terminam seus estudos.
Considerada traidora pelos tutsis, Juliette foi decapitada em frente à amiga e às filhas. Maggy e todas as crianças foram poupadas em troca do dinheiro que havia na sacristia.
“Foi aí que eu entendi que eu tinha uma missão esplêndida. Peguei essas crianças e não sabia aonde ir. Pra começar, fui ao cemitério. Pedi ao Senhor que me desse força. Eu não tinha força, não tinha casa, não tinha dinheiro.”
Ajuda
Por sugestão de um dos órfãos, ‘mamãe Maggy’ entrou em contato com um voluntário alemão que vivia na região e que aceitou alojar o grupo em sua casa.
“Cada dia, chegavam crianças feridas, órfãs. Até os criminosos deixavam crianças lá. Eu tinha uma força que não sei de onde tirava. Fazia berços com papelão, ia a ONGs que não me atendiam, pegava embalagens de computadores e serragem e com isso fazia os colchões. Pedia alimento ao programa mundial (da ONU). E as crianças mais velhas, meus sete primeiros filhos, ajudavam.”
Em sete meses, sua “família” não convencional cresceu: de 32 para 400 crianças. Foi então que a criação de uma primeira ONG, Maison Shalom (Casa de Paz), se impôs como uma necessidade, para permitir a capatação de recursos.
“Não fiz só pelas crianças. Na verdade, eu quis criar uma nova geração. Eles são hutus e tutsi…indo à escola juntos, poderão mudar sua comunidade.”
Para ajudar os menores a lidar com os traumas deixados pela violência étnica, Maggy se apoiava na capacitação e na alegria – uma estratégia que ainda prevalece em suas instituições.
“O que tira o trauma das crianças é, primeiro de tudo, o amor. Nunca as chamei de órfãs. Dizia que eram príncipes e princesas. Sempre disse que podem reconstruir e ser atores de seu futuro. E cada noite a gente dançava, tocava tambores (parte da tradição cultural burundinesa). Havia alegria naquela casa! Alguns, mesmo cegos, se tornaram músicos.”
Maggy assegura ainda que a coabitação entre crianças de etnias diferentes, mas com problemas similares, também tinha efeitos positivos.
“As crianças choravam quando chegavam, mas eram as outras crianças que as ajudam com a lidar com o trauma primeiro. Um dizia pro outro: ‘Ah, você não tem um braço? Veja, e eu não tenho um olho. E daí? Quem é melhor? Essa maneira faz com que eles contem suas histórias sem que você os converta em vítimas.”
Seus olhos brilham ao lembrar: “A gente encenava os crimes e enfeitiçava os criminosos. O primeiro filme foi Romeu e Julieta, que mostra como as pessoas são bestas quando se matam”.
Ao mesmo tempo, com a ajuda de um advogado, Maggy realizava os trâmites necessários para restituir às crianças as propriedades de suas famílias dizimadas e ajudava grupos de irmãos a se instalarem e recomeçarem uma vida independente.
Império humanitário
E cada vez que aparecia uma nova necessidade, Maggy respondia criando uma nova estrutura ligada a Maison Shalom.
Dessa forma, para reduzir a mortalidade materna que dava origem a cada vez mais órfãos, ela criou uma maternidade que daria origem ao Hospital Rema, que chegou a ser o mais importante da região de Ruyigi. Chloé, uma de seus primeiros sete filhos, formada em medicina na Suíça, foi a responsável pelo lugar.
Quando a comunidade começou a sofrer com a fome, Maggy criou uma pequena cooperativa agrícola que mais tarde se multiplicaria em 27, em três províncias do país.
Questionada sobre a origem dos fundos para financiar tantos projetos, Maggy ri.
“Havia uma loucura que contaminava os outros. Conheci pessoas que me fizeram doações, depois ganhei um prêmio de um milhão de dólares em Seattle, a Suécia me deu o Prêmio Nobel das Crianças, com 700 mil dólares, depois foi a Caritas alemã, uma cooperante belgame deu três casas em Bujumbura. É isso que quer dizer galvanizar as pessoas. Viam que eu não me desestabilizava, mesmo com 250 bebês chorando do outro lado, e me viam cantando com as crianças.”
Recomeçar
Em 2016, Barankitse foi indicada para o Prêmio Nobel da Paz e ganhou o prêmio Aurora – de US$ 1 milhão – entregue pelo ator George Clooney em cerimônia em Yerevan, na Armênia, “pelo impacto que teve ao salvar milhares de vidas e cuidando de órfãos e refugiados nos anos de guerra civil no Burundi”.
Um ano antes, a violência voltara a explodir no Burundi com a decisão do presidente, Pierre Nkurunziza, em abril de 2015, de concorrer a um terceiro mandato, infringindo o Acordo de Paz e Reconcilição de Arusha, assinado em agosto de 2000.
Depois de criticar abertamente a tentativa do presidente de permanecer no poder, ela teve seu passaporte revogado, um mandado internacional de prisão emitido pelo governo – que até agora foi ignorado por vários países europeus que a receberam – e passou a receber ameaças de morte.
O governo passou a acusá-la de conspiração e corrupção de menores, e ordenou o bloqueio das contas bancárias ligadas a Maison Shalom, ameaçando a sobrevivência de todas as infraestruturas que Barankitse criou no Burundi.
Exilada em Kigali, em Ruanda, ‘mamãe Maggy’ utilizou as últimas doações recebidas para fundar uma nova ONG, a Oásis de Paz, dedicada a ajudar os refugiados burundineses que chegaram em massa a Ruanda.
“Eu também poderia me sentar em chorar. O que eu não sofri? Comecei perdendo meu pai aos cinco anos. Vi toda essa guerra. Tomaram tudo o que tinha. Fugi (para Kigali) sem nada. Mas eu sabia que, com o amor, iria recomeçar. Nada pode deter o amor. Nem o ódio, a guerra, a doença. Eles não me terão!”, afirma.
Apesar da determinação, Barankitse admite que tem medo de ser executada.
“A morte dá medo. Até o filho de Deus disse: ‘Pai, por que você me abandonou?’ Eu não pretendo ser um mártir.”
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