por Sul21*
Antes de Roberta* nascer, o seu avô sofria com depressão. Era início da década de 1990 e o estigma que recaía sobre as doenças mentais ainda era grande. Ele era visto como um “preguiçoso”. Alguém que não queria trabalhar. Ela não chegou a conhecê-lo. Tampouco se falava sobre ele em casa. À medida que foi crescendo, Roberta foi nutrindo uma curiosidade pelo avô. “Eu fiquei sabendo pouco a pouco. Sempre tive muita curiosidade sobre como meu avô tinha morrido, já que todos falavam que eu era igual a ele, fisicamente e no comportamento, como na forma de sentar na cadeira, por exemplo”, conta.
Duas semanas antes de completar 15 anos, Roberta passou por um processo traumático de perda familiar. Sua madrinha faleceu, vítima de câncer. “Ela era como uma mãe pra mim, era minha referência de força, de vontade de viver e tudo mais. Alguns meses depois, eu sentia algo além do luto. Simplesmente não passava e eu não aceitava a morte dela”. Os pensamentos de Roberta a levaram para o mesmo caminho que tinha encerrado a vida de seu avô.
Na última segunda-feira (9), a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um relatório com informações de 183 países sobre suicídio. Com dados referentes a 2016, aponta que a taxa global para esse tipo de morte foi de 10,5 para cada 100 mil pessoas. No Brasil, é de 6,1 por 100 mil. Apesar de a OMS registrar um declínio geral de casos entre 2010 e 2016, a região das Américas teve um aumento de 6% no período. Em 2016, foi a segunda maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos, atrás apenas de acidentes de trânsito.
Para cada morte, contudo, há cerca de outras 20 tentativas, de acordo com a OMS. Há também casos de doenças e distúrbios psicológicos, que muitas vezes não são tratados adequadamente ou sequer são diagnosticados. Em relatório divulgado em 2017, a mesma OMS alerta que os casos de depressão sofreram um aumento acentuado entre 2005 e 2015, de 18%. Somente no Brasil, a doença atinge 5,8% da população, ou cerca de 11,5 milhões de pessoas. Além disso, apontou que mais de 9% da população, cerca de 18 milhões de pessoas, sofrem com distúrbios relacionados à ansiedade.
Aos 15 anos, Roberta sobreviveu. Fez novas amizades, conheceu novos colegas no Ensino Médio e foi se recuperando, conseguindo sair de casa e do “buraco” que criava para si mesma. Mas não procurou ajuda. Nem chegou a ser diagnosticada. “Nessa época, eu nunca tinha ido em um psicólogo, psiquiatra ou qualquer coisa assim. O assunto não era pauta na família, até porque minha dinda tinha três filhos e grande apoio, naquela época, foi destinado para eles. Eu também me sentia mal por isso, me sentia ‘esquecida’. No final, nunca tive um diagnóstico real ou até mesmo tratamento”.
Em 2016, já na faculdade e estagiando, Roberta começou a sofrer crises que posteriormente seriam diagnosticadas como de ansiedade. Falava para sua família, mas não encontrava acolhimento. Como resposta, ouvia coisas como: “Tu tem que te acalmar, isso vai passar. Tu está fazendo muitas cadeiras, é isso. Logo tu tem férias e passa”.
Só no ano seguinte a família perceberia a gravidade da situação. “Enquanto almoçávamos, eu tive uma crise. Minha mãe nunca tinha visto e ficou preocupadíssima. Meu corpo todo tremia, ela me levou pra casa e me deitou na cama, eu chegava a tremer a cama. Demorou horas pra passar”. Foi ali que a mãe percebeu que ela precisava da ajuda de um psiquiatra. Junto com a prescrição de um medicamento para ansiedade, começou a fazer psicoterapia semanalmente.
Atenção para os sintomas
Um dos sinais de depressão é, por exemplo, a súbita perda de interesse em atividades que o adolescente ou jovem estava envolvido. Presidente da Comissão de Psicoterapia do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS), Geisa Felippi ressalta que isso não significa dizer que o jovem encontrou outra atividade que o satisfaz mais, mas sim que deixou de se interessar por algo sem motivo aparente.
“Por exemplo, fazia natação, não quer mais, vai fazer outro esporte. Não. Mas um desinteresse pela vida, de não querer mais estar com os amigos, de não querer mais ir para a escola. Acho que pensar quais são as atividades mais comuns que o adolescente realiza e se tiver algum prejuízo nessas atividades, serve de alerta para ver o que está acontecido”, diz.
Ela alerta também para aumento da agressividade e do isolamento. “Tem um comportamento e lá pelas tantas começa a mudar muito. Não que um adolescente que não saia muito com os amigos tenha um problema, não é isso. Mas é importante observar se ele tinha esse comportamento de sair com os amigos e lá pelas tantas deixa de fazer. É diferente de um adolescente que desde sempre não gosta muito”, diz.
Em dezembro de 2017, Roberta passou por mais um trauma familiar. Sua avó materna, que tinha cuidado dela desde criança, faleceu. Mais uma vez, ela sentiu um luto que teimava em não passar. Dessa vez, contudo, contava com suporte. Foi diagnosticada com depressão e recebeu o tratamento adequado. Ainda assim, não era fácil lidar com a doença. “Foram altos e baixos de novo. Eu só queria ficar em casa, dormir, não queria ver meus amigos, não sentia vontade de estudar ou ir na aula, o que sempre foi um prazer pra mim”, diz.
A psicóloga e mestra em Políticas Públicas Luana Fernandes desenvolve atualmente um trabalho de atendimento psicológico a cerca de 100 jovens em um projeto social da Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Ela afirma que há casos de jovens adoecidos em que os pais são chamados para conversar e acabam por minimizar a situação dos filhos, o que leva ao distanciamento entre o jovem e sua família, e pode também vir acompanhado de uma tendência a “sofrer calado” ou tentar aparentar estar “tudo bem”.
Ela destaca que muitos jovens que passam pela depressão não se enquadram no estereótipo que existe para retratar um “jovem depressivo”, que é o de estar sempre triste, de não sair da cama. “Tem muitas pessoas que estão depressivas e com um sorriso no rosto, mostrando para as outras que está tudo bem. Tanto que por vezes as famílias não se dão conta, não percebem. A experiência que eu tenho é que, algumas vezes, ao chamar a família para conversar, a família tem um movimento, e aí eu acho que não seja só uma questão de classe, de desqualificar por vezes os sentimentos dos filhos. Por exemplo, ‘ah, eu que trabalho o dia inteiro deveria estar depressiva’”, diz.
A psicóloga pondera que ainda é muito forte o estigma da saúde mental, o que faz com que a própria pessoa adoecida se recuse a procurar ajuda especializada. “Eu até costumo falar com eles aqui. ‘Gente, se eu estou com o meu pé inchado, ninguém vai cogitar a possibilidade de eu não ir a um ortopedista, certo?’ Ninguém vai falar para de frescura, depois o seu pé desincha ou é só você perseverar, persistir, que você vai ficar bom. Mas, quando se trata de doença mental, muitas vezes as pessoas ainda hoje têm esse preconceito de achar que psiquiatra é coisa de maluco, que psicólogo é coisa de maluco. Isso é muito ruim, porque afasta a pessoa de tratamento”, afirma.
Geisa Felippi avalia que a melhor indicação que se pode dar aos pais de jovens adoecidos é sempre procurar a ajuda de um profissional para os filhos. “Para essas circunstâncias, não existe uma receita de bolo, tem que avaliar cada caso, cada situação, cada cultura, cada educação. Acho que a melhor opção é procurar a ajuda de um profissional, procurar a ajuda da escola, ver o que está acontecendo. Mas a ajuda de um psicólogo é fundamental nessa hora, para avaliar caso a caso”, diz.
Além disso, recomenda aos pais sempre tentarem conversar com seus filhos. “O diálogo, acima de tudo, organiza, estrutura, e dá a oportunidade de o adolescente falar o que está sentindo, o que está acontecendo. Acho que a questão do diálogo é primordial. Que o adolescente possa se sentir seguro para conversar com um adulto sobre essas questões”, afirma.
Internações miram reinserção
O professor Christian Kieling, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordena o programa de depressão na infância e na adolescência (ProDIA) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Referência no tratamento de doenças mentais no RS, o Clínicas conta tando com atendimento ambulatorial e de psicoterapia, como, para os casos mais graves, de internação. Kieling destaca que, atualmente, a internação de crianças e adolescentes é tratada como uma exceção, reservada para casos extremos como tentativas de suicídio. É indicada em casos que o médico considera importante para proteger o adolescente. “Muitas vezes as famílias não têm condições de, em casa, prover todos os cuidados necessários para evitar que aquele adolescente tente o suicídio de novo”, explica o psiquiatra.
Kieling reforça que a internação é apenas a “ponta do iceberg” do tratamento em saúde mental e que, atualmente, já se trabalha com a reinserção do paciente às suas rotinas desde o momento inicial.
“A internação é um momento que é para ser curto, é para ser poucos dias, no máximo poucas semanas. Não é aquela imagem da pessoa ficar morando num hospital psiquiátrico como existia no passado. A nossa preocupação toda é justamente em organizar as coisas, buscar na rede de saúde atendimento para esse adolescente, vincular esse adolescente aos serviços de saúde, porque muitas internações talvez nem fossem necessárias caso o adolescente já estivesse vinculado a um sistema de saúde. Muitas vezes o adolescente que interna é o adolescente que não conseguiu um atendimento lá fora e por isso foi piorando, piorando e piorando. Talvez, se esse adolescente tivesse recebido uma oferta de psicoterapia ou mesmo um tratamento medicamentoso, a internação nem fosse necessária”, afirma.
Aumento de casos?
Luana Fernandes destaca que a depressão hoje é a nona causa de adoecimento entre os jovens e a ansiedade é a oitava. Ela afirma que tem percebido um crescente adoecimento entre os jovens que participam do projeto social em que atua na Rocinha. Ela acredita que o contexto de elevados índices de desemprego na juventude e de mudanças aceleradas no mundo do trabalho, com aumento de ocupações sem direitos, pode ser uma das explicações para essa situação.
“Os jovens são a principal população que está sofrendo com desemprego. E os jovens da periferia ainda mais. A desigualdade social também adoece, ela também mata. Ela cria contextos desiguais e contextos de adoecimento”, diz. “Por vezes, os jovens sofrem porque estão ansiosos em relação às possibilidade de futuro. Eles ficam ansiosos em relação ao presente que eles têm. Porque a comida é uma urgência. Você ter o que comer, onde dormir, ter o dinheiro para pagar o aluguel, e muitos se cobram em como auxiliar as famílias e para começar logo a trabalhar”.
Geisa Felippi avalia que, na entrada da vida adulta, os casos de depressão também podem estar ligados com a questão da tomada de decisões. É uma fase da vida em que a pessoa precisa decidir seus rumos profissionais. Além disso, também é um período marcado por muitas dúvidas a respeito de sexualidade e gênero. “O principal é o crescer. Sair da adolescência e entrar na vida adulta, que tem muitas decisões a serem tomadas”, diz.
A psicóloga destaca que não é possível dizer se há mais casos de depressão atualmente. O que ela avalia é que a doença está sendo mais debatida, o que pode contribuir para que mais pessoas procurem ajuda. “Antes se sofria muito mais calado, muito mais quieto”, diz.
O professor Kieling diz que, nos últimos anos, tem aumentado a demanda por internações psiquiátricas de crianças e adolescentes no Hospital de Clínicas, mas que é difícil atribuir isso a causas específicas. Ele avalia que há hipóteses que tentam explicar esse aumento que vão desde o maior reconhecimento dos problemas de saúde mental, de uma redução do estigma, até alguns estudos que apontam que realmente pode estar havendo um aumento nos problemas de saúde mental. “Apesar de as pessoas ainda terem vergonha de falar de problemas de saúde mental, na comparação com o que era décadas atrás, a facilidade é bem maior de falar sobre isso e de buscar ajuda”, diz.
No entanto, ele diz que há um problema de metodologia que impede a comparação entre estudos feitos no passado e atuais, uma vez que há mais abertura para que o tema seja tratado e debatido no presente. “Eu não posso, a partir dos poucos adolescentes que internam no Hospital de Clínicas, traçar relações de causa e efeito. Está muito na moda culpar as mídias sociais, eu não acredito que seja, mas eu não poderia dizer que isso é a causa, porque apesar de vários dos adolescentes que internam ali com a gente terem um uso excessivo de mídias, tem tantos que também tem um uso tanto ou mais excessivo e não internam. O que eu quero dizer é que é muito difícil tratar essa relação de causa e efeito”, diz o psiquiatra.
De fato, há um esforço global pela tomada de consciência sobre essas temáticas. Desde 2003, o 10 de setembro marca o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, uma iniciativa que partiu da International Association for Suicide Prevention. Todo o mês de setembro também é marcado por campanhas de prevenção a doenças psicológicas, o chamado Setembro Amarelo, que é promovido desde 2015 no Brasil por entidades como o Centro de Valorização da Vida, o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria. O mês também costuma ser marcado pelo lançamento de relatórios e campanhas oficiais em todas as esferas.
Para Geisa, iniciativas como o Setembro Amarelo contribuem para que as pessoas encarem o estigma relacionado a doenças mentais e procurem ajuda. Outro fator que contribui, segundo ela, é o aumento da discussão sobre doenças mentais em produtos culturais, como séries e filmes, tornando cada vez mais normalizada essa realidade. No entanto, ela alerta que ainda há um tabu muito grande sobre o tema. “Quanto mais se fala, mais se vai dessensibilizando e tirando aquela de que a depressão é uma pessoa falar que quer se matar, que é uma bobagem, que está chamando atenção, todos esses temas tratados ajudam a contribuir para pensar no sintoma que a pessoa está passando”, afirma.
Ela também considera que as discussões mais frequentes a respeito do tema contribuem para que familiares, amigos, professores e outras pessoas estejam alerta para os sintomas da doença. “Estar sendo falado é positivo, mas é um assunto que sempre vai assustar. Ainda é um tabu sim. Quanto mais se falar, mais as pessoas vão ficar alerta para os sinais”, diz.
Roberta conta que tanto a ansiedade quanto a depressão a obrigaram a fazer mudanças em seu estilo de vida. Passou a priorizar apenas as coisas que lhe fazem bem. Aprendeu também que nem todo medicamento funciona bem com ela, que eles têm efeitos colaterais. Aprendeu a respeitar a si própria e ao seu corpo. Hoje, sabe que não pode exagerar em festas, por exemplo. Ainda assim, por um tempo continuou tendo “crises horríveis”. “Era no mínimo uma crise por semana. Era quase que um efeito dominó: vinha a ansiedade, e depois a depressão, eu mesma me julgando porque não conseguia controlar minha ansiedade. Esse pensamento só foi desconstruído com muito trabalho na terapia”, conta.
O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece apoio emocional e prevenção ao suicídio pelo telefone 188, por e-mail e chat 24 horas, todos os dias, sob total sigilo.
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Roberta é jornalista, tem 23 anos. A pedido, teve a identidade preservada nesta reportagem. Publicado originalmente no site do Jornal Sul21.