por Moisés Mendes, do jornal Extra Classe*
O Brasil mergulha fundo nas dúvidas sobre as eleições, sobre o tempo de prisão de Lula, sobre a apatia pós-golpe e sobre o vazio de liderança da direita que se articulou em torno dos tucanos nas últimas décadas. Mas uma pergunta é mais grave, porque atormenta todos os que ainda acreditam na democracia. É a que está no título deste artigo.
É o medo que assombra as democracias de todo o mundo. Repete-se hoje no Brasil a grande interrogação sobre a duração do estado de exceção, que transformou o Judiciário em um poder hipertrofiado, que empoderou golpistas e que ajudou a disseminar o fascismo. Muita gente se considera autoridade da moralidade hoje, a qualquer custo.
O fascismo, nas suas muitas formas de manifestação, é a expressão do Brasil deformado pela Lava-Jato, que diz aos cidadãos que tudo podem, se estiverem defendendo os ‘bons costumes’ e atacando corruptos, desde que estes sejam de esquerda.
Mas quanto tempo dura o fascismo, que prospera impunemente na manifestação dos políticos que protagonizaram o golpe, nos seus cúmplices nas esquinas, nos assassinatos de negros e pobres, na impunidade dos assassinos de Marielle, nos ataques que se repetem nas redes sociais, nas ameaças com relhos, na gritaria dos que pedem mais um golpe nas calçadas do Parcão?
O fascismo fortaleceu ‘autoridades’ que em outros tempos seriam apenas vizinhos mal-educados ou colegas de escola e trabalho desinformados. Sentem-se autoridades, como guardiões da ordem, vigias como o guardinha de um shopping de Salvador que acusou e julgou sumariamente um menino miserável por estar, segundo o guarda, onde não devia.
Qualquer um pode se considera parte da força-tarefa da Lava-Jato. O Brasil tem autoridades por toda parte, das oficiais, institucionalizadas, às improvisadas. E o que acaba menos tendo é isso mesmo, autoridade.
Desde o golpe de agosto de 2016, este é o país das autoridades. Todas mobilizadas pelo sentimento de que agem em nome de uma lei nem sempre escrita ou interpretada ao gosto de cada um.
A reboque das controvérsias patrocinadas pelo Supremo, crescem o bolsonarismo, o moralismo raso, a defesa do armamentismo e o uso dos recursos da Justiça para intimidação. Como fazem em Passo Fundo com o historiador Tau Golin, processado por um sujeito por ele denunciado como pregador de ideias fascistas.
O fascismo infiltra-se onde não há resistência. O retorno de uma visita ao interior do Estado sempre propicia o relato de novidades. Cidades que crescem, encolhem ou ficam mais bonitas ou mais feias. Os relatos hoje têm quase sempre um componente recente: a extrema direita se alastra nas pequenas comunidades, principalmente entre os jovens.
Participei há poucos dias do debate com um grupo de pessoas em torno do texto final do documento do Movimento 3D (Democracia, Diálogo e Diversidade), que será lançado dia 27 de junho no Auditório Dante Barone, da Assembleia Legislativa.
A juíza federal Ana Inés A. Latorre, participante do grupo, fez uma intervenção incisiva: que se enfatizasse, nas primeiras linhas do manifesto, que aquele era um apelo pela mobilização contra a proliferação do fascismo. A juíza dividiu o grupo e talvez o combate ao fascismo não tenha merecido o destaque que ela requeria. Mas assim é a democracia.
Fascismo é uma das palavras mais repetidas nas redes sociais. Concordo com a juíza Ana Inés: a palavra não ficará gasta ou sem sentido pela repetição. Quanto mais for repetida, mais os que a soletram em voz alta irão expressar resistência e destemor.
Mas quanto tempo mais iremos conviver com a ameaça nem sempre percebida? O fascismo italiano durou pouco mais de duas décadas. O nazismo no poder, menos de uma década e meia. O salazarismo, 40 anos. A ditadura paraguaia se prolongou por 35 anos. A ditadura soviética, sete décadas. A ditadura brasileira pós-64, duas décadas.
No Brasil pós-golpe de agosto de 2016, o fascismo não chegou ao poder. Ainda não. Mas dá lastro aos que dele desfrutam em forma de quadrilha já denunciada pelo Ministério Público. É provável até que a militância fascista nem precise apropriar-se das instituições, mas infiltrar-se em algumas delas para exercer controles e subjugar quem considera inimigos.
O fascismo à brasileira tem as ‘sutilezas’ do racismo, da xenofofia, da homofobia. O fascismo verde-amarelo não precisa estar incorporado à autoridade formal para ser cruel, violento e inquisidor. Ele massacra mesmo estando nas bordas do poder, onde se sente e inspirado pelos desmandos de parte do Judiciário punitivista e do Ministério Público que o atiça.
O fascismo brasileiro derruba máscaras, expõe convicções e ignorâncias e revela o caráter submerso de amigos, vizinhos, parentes, colegas de sala de aula e de trabalho.
Alguém dirá, em defesa do purismo das definições, que manifestações isoladas, da miudeza da nossa vida sob estado de exceção, não configuram o fascismo na sua expressão política. Configuram, porque muitas vezes assumem a forma de ações coletivas, articuladas, sem constrangimentos e sem medos.
A militância de extrema direita, organizada em entidades, e parte da direita dissimulada dispersa e avulsa expressam derivações do fascismo, que insinua negar a política para ter seu controle absoluto.
A resistência o derrota, mesmo que se considere que o fascismo é um mal sempre de plantão, à espreita, apenas hibernando, inativo ou fingindo-se de morto, pronto para atacar povos politicamente fragilizados. O fascismo continuará ativo no Brasil enquanto se sentir à vontade.
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Texto de Moisés Mendes para o jornal Extra Classe.
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