via Blog da Boitempo*
“A imagem do líder satisfaz o duplo desejo do seguidor de se submeter à autoridade e de ser ele próprio a autoridade. Isso corresponde a um mundo no qual o controle irracional é exercido, apesar de ter perdido sua convicção interna em função do esclarecimento universal. As pessoas que obedecem aos ditadores sentem que eles são supérfluos. Elas se reconciliam com essa contradição por meio da presunção de que elas próprias são o opressor cruel.”
A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista
(artigo de Theodor W. Adorno)
Durante a última década, a natureza e o conteúdo dos discursos e panfletos de agitadores fascistas americanos foram submetidos à pesquisa intensiva de cientistas sociais. Alguns desses estudos, realizados segundo as linhas da análise de conteúdo, resultaram numa exposição abrangente [que se encontra] no livro Prophets of deceit, de L. Löwenthal e N. Guterman. A imagem global obtida é caracterizada por dois traços principais. Em primeiro lugar, com a exceção de algumas recomendações bizarras e completamente negativas – confinar estrangeiros em campos de concentração ou expatriar sionistas –, o material de propaganda fascista nesse país preocupa-se pouco com questões políticas concretas e tangíveis. A maioria esmagadora das declarações dos agitadores é dirigida ad hominem.
Elas são obviamente baseadas mais em cálculos psicológicos que na intenção de conseguir seguidores por meio da expressão racional de objetivos racionais. O termo “incitador da turba”, apesar de censurável por seu desprezo inerente pelas massas, é em boa medida adequado, já que expressa a atmosfera de agressividade emocional irracional propositadamente promovida por nossos pretensos hitleristas. Se é desrespeitoso chamar as pessoas de “turba”, é precisamente o objetivo do agitador transformar essas mesmas pessoas em uma “turba”, isto é, uma multidão inclinada à ação violenta sem nenhum objetivo político sensato, e criar a atmosfera do pogrom. O propósito universal desses agitadores é instigar metodicamente o que, desde o famoso livro de Gustave Le Bon, é comumente conhecido como “psicologia das massas”.
Em segundo lugar, o método dos agitadores é verdadeiramente sistemático e segue um padrão rigidamente estabelecido de “dispositivos” definidos. Isso não se liga apenas à unidade fundamental do propósito político – a abolição da democracia mediante o apoio de massa contra o princípio democrático –, mas mais ainda à natureza intrínseca do conteúdo e da apresentação da própria propaganda. A similaridade das expressões de vários agitadores – das figuras bem conhecidas, como Coughlin e Gerald Smith, aos pequenos disseminadores provincianos de ódio – é tão grande que basta em princípio analisar as declarações de um deles para conhecê-los todos. Além disso, os próprios discursos são tão monótonos que, assim que se fica familiarizado com o número muito limitado de dispositivos em estoque, o que se encontra são intermináveis repetições. De fato, a reiteração constante e a escassez de ideias são ingredientes indispensáveis da técnica toda.
“Como seria impossível para o fascismo ganhar as massas por meio de argumentos racionais, sua propaganda deve necessariamente ser defletida do pensamento discursivo; deve ser orientada psicologicamente, e tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos.”
Na medida em que a rigidez mecânica do padrão é óbvia e ela mesma expressão de certos aspectos psicológicos da mentalidade fascista, não se pode evitar o sentimento de que o material de propaganda de tipo fascista forma uma unidade estrutural com uma concepção comum total, consciente ou inconsciente, que determina cada palavra que é dita. Essa unidade estrutural parece se referir à concepção política implícita tanto quanto à essência psicológica. Até agora, deu-se atenção científica apenas à natureza destacada e de certo modo isolada de cada dispositivo; as conotações psicanalíticas dos dispositivos foram sublinhadas e elaboradas. Agora com os elementos esclarecidos suficientemente, chegou a hora de centralizar a atenção no sistema psicológico em si – e pode não ser inteiramente acidental que o termo invoque a associação da paranoia –, o qual compreende e gera esses elementos. Isso parece ser o mais apropriado, caso contrário a interpretação psicanalítica dos dispositivos individuais permanecerá algo fortuita e arbitrária. Um tipo de quadro de referência teórica terá de ser desenvolvido. Na medida em que os dispositivos individuais pedem quase irresistivelmente uma interpretação psicanalítica, não é senão lógico postular que esse quadro de referência deveria consistir na aplicação de uma teoria psicanalítica mais abrangente e básica ao método global do agitador.
Tal quadro de referência foi fornecido pelo próprio Freud em seu livro Psicologia das massas e análise do eu, publicado em inglês já em 1922, muito antes que o perigo do fascismo alemão parecesse ser agudo. Não é exagero dizer que Freud, apesar de pouco interessado na fase política do problema, claramente previu a origem e a natureza dos movimentos fascistas de massa em categorias puramente psicológicas. Se é verdade que o inconsciente do analista percebe o inconsciente do paciente, pode-se também presumir que suas intuições teóricas são capazes de antecipar tendências ainda latentes em um nível racional, mas se manifestando em um nível mais profundo. Pode não ter sido por acaso que, após a Primeira Guerra Mundial, Freud tenha voltado sua atenção para o narcisismo e os problemas do eu em sentido específico. Os mecanismos e conflitos instintuais envolvidos desempenham de forma evidente um papel cada vez mais importante na época atual, considerando que, de acordo com o testemunho de analistas praticantes, as neuroses “clássicas”, como a histeria de conversão, que serviram de modelos para o método, ocorrem menos frequentemente agora que na época do próprio desenvolvimento de Freud, quando Charcot tratou clinicamente a histeria e Ibsen fez dela tema de algumas de suas peças.
De acordo com Freud, o problema da psicologia de massa está bastante relacionado ao novo tipo de aflição psicológica tão característico da época que, por razões socioeconômicas, testemunha o declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza. Embora Freud não se tenha preocupado com as mudanças sociais, pode-se dizer que ele revelou nos confins monadológicos do indivíduo os traços de sua crise profunda e a vontade de se submeter inquestionavelmente a poderosas instâncias (agencies) coletivas externas. Sem jamais ter se dedicado ao estudo dos desenvolvimentos sociais contemporâneos, Freud apontou tendências históricas por meio do desenvolvimento de seu próprio trabalho, da escolha de seus temas e da evolução dos conceitos-guia.